Aí é Soda

Aí é Soda!

*por Sidney Nicéas

Eu tinha 06 anos de idade e me lembro bem, meus dois irmãos mais velhos com a bola de borracha cor de telha, conversavam sobre alguma coisa que queriam brincar quando eu subi com os dois pés em cima da pelota, Sai de cima senão ela vai ficar oval!, gritou Bruno, o mais velho de todos. Desci imediatamente e soltei rindo um Foi mal! Aí é soda! Os quatro olhos à minha frente se arregalaram ao mesmo tempo, Diego e Bruno num uníssono Tu tá doido? Se papai ouvir isso a gente tá lascado! Lá em casa era assim, falou palavrão ficava de castigo, mesmo que fosse uma reprodução fajuta feito a minha. Foi foda.

Lembrei disso há pouco, pois minha filhotinha de 03 anos soltou um Porra! essa semana, reproduzindo o que ouviu em algum lugar – talvez até em casa mesmo. Não valorizei muito na hora, ela repetiu e intervi falando mais da agressividade dela do que do palavrão. Acho que funcionou, ela já teve outros momentos de insatisfação mas não soltou mais nenhum Porra! pra gente. Trago esses dois fatos não pela questão do palavrão. A repetição do que vemos e ouvimos é que anda pegando. E não são somente as crianças que fazem isso, infelizmente. Tem uma tuia de marmanjo e marmanja multiplicado por aí que não pensa, não critica, não estabelece parâmetros para análise do que ouve ou lê (interpretação de texto também é coisa séria nos dias de hoje). E se fossem reproduções de palavras bobas, ok. Mas não.

Quem reproduz sem questionar se espelha em alguém. Ocupar função de liderança exige algo que poucos têm noção: dar o exemplo – ser autoridade está longe de ser figura mandante. Ser pai ou mãe ou executivo de uma instituição ou presidente da república, por exemplo, deveria requerer, além de preparo para exercer a função, uma condição de consciência ante o exemplo para os demais. Deveria. A falta de educação e cultura de uma sociedade promove uma esculhambação de maus exemplos – e aí está mesmo o problema, a falta de educação e cultura, de quem ‘comanda’ e de quem é ‘comandado’. Quando olho para o pleito eleitoral que se aproxima, então, tremo na base! Quantos maus exemplos maravilhosos pedindo voto, toda eleição é isso, o sistema não produz nada além do esgoto que vivemos, nada. Votar no menos ruim a cada pleito é a certeza de que estamos no buraco. A gente segue narrativas falaciosas e continua caindo no conto de que o problema do país não é o chamado Centrão. Çei…

Somos um projeto de nação ainda infantil, muito infantil. Vivemos a política como se fosse um jogo de futebol e o futebol como se fosse uma arena de guerra. Ignoramos a miséria na esquina e nos preocupamos com o carro novo que não temos grana pra pagar. Pagamos juros de cartão de crédito inomináveis e mantemos um padrão de vida ilusório. Creditamos à riqueza uma felicidade que não existe em nenhuma classe social. Fingimos que fama é sucesso e que sucesso é só dinheiro. Cegamos a vida numa correria infernal por esse mesmo dinheiro e fingimos que o mundo não é um inferno onde poucos brincam de luxar. Votamos repetindo narrativas idiotizantes e não paramos para pensar que a base em que estamos sedimentando nossas vidas é ruim, feita por uma minoria que tá se lixando pra maioria, exceto com a certeza de que serão servidos perenemente.

Juro que ia escrever essa crônica embalado pelas últimas notícias absurdas que nos inundaram de pavor esta semana – crime de ódio político camuflado de mero desentendimento pela própria polícia, médico estuprando pacientes grávidas desacordadas, pai matando esposa, filhos e parentes e se matando por não aceitar uma simples ruptura de relacionamento… -, gente repetindo o pior dos outros e de si como se a vida fosse algo idiota (e fazendo dela uma estupidez mesmo). Eu ia. Mas escrevo essas palavras enquanto uma senhora de idade desbrava o lixo de um prédio que fica aqui em frente a casa dos meus pais, catando plástico, lata, vidro. Seu vestido azul surrado, o coque mal penteado segurando o prateado dos cabelos ralos, as mãos encarquilhadas. Ela nem me viu, talvez sentisse vergonha de ter que passar o domingo feito bicho. Olho para ela agora se afastando. Penso no Aí é soda! e no Porra! que me invadiram a lembrança, citados no começo do texto. E fico com saudade de ser inocente; o mundo anda precisando de mais palavrões bobos e menos estupidez

Tá soda.

 

 

Sidney Nicéas é escritor com cinco obras publicadas e editor do Blog Tesão Literário. Colunista de Literatura das Rádios CBN e Transamérica, preside a Ideação, co-realizadora da Bienal Internacional do Livro de Pernambuco. Prepara dois romances para breve, um biográfico e outro de ficção. Também é Relações Públicas com MBA em Gestão de Pessoas, Pós-Graduando em Escrita Criativa e titular da própria assessoria de comunicação, a Sidney Nicéas Comunicação Integrada. Ainda integra os projetos sociais Sertânia Sem Fome e Mundo do Lua, além de promover diversas ações que visam a inclusão social pela Literatura.

 

 

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