A trilogia Before e a necessidade da contingência

Imagem do filme Before Sunrise.

Fonte: Parkcircus.com (foto Lee Daniel)

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A trilogia Before e a necessidade da contingência

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Gabriel Von Gerhardt

Os três filmes de Richard Linklater, de 1994 até 2013, com o intervalo de mais ou menos 10 anos entre cada um, retratam todos os efeitos que um encontro fortuito pode desencadear. Jesse é um norte americano em viagem pela Europa e Celine, uma francesa que acaba de visitar sua avó e está voltando para seu país, ambos estão no mesmo vagão de um trem e acabam sentando lado a lado, desenvolvendo uma conversa despretensiosa, daí emerge uma primeira afinidade eletiva. Jesse, então, propõe a Celine que desça com ele em Viena (onde no dia seguinte ele pegará o voo de volta para os EUA) para aproveitarem o resto do dia juntos e quem sabe criarem uma ruptura no cotidiano, se conhecerem melhor e darem continuidade àquela confluência de interesses.

A partir da leitura da sinopse, pode parecer que esse será mais um filme romântico clichê, um entretenimento vazio, formulaico. Contudo, basta assistir à primeira cena e já é possível constatar a excepcionalidade dessa narrativa, haja vista a naturalidade e sutileza com que são reveladas as personalidades dos dois protagonistas. Jesse é um rapaz com opiniões veementes, controversas, mas sempre preocupado com as impressões que causa e interessado nas ideias alheias, ele está voltando para os Estados Unidos depois de um termino de um relacionamento acalorado. Celine é muito inteligente, perspicaz, ela dá consistência e embasamento para as divagações de Jesse, lê um livro de Bataille no trem quando se encontram e é mais comprometida com causas sociais, as vezes se impressiona com opiniões polêmicas de Jesse, mas se encanta com a espontaneidade dele.
Um dos temas mais marcantes da trilogia é justamente a espontaneidade, como os fios da narrativa vão sendo traçados livremente, fica sempre a ideia de que tudo aquilo poderia não ter acontecido, e tudo bem. Eles concordam em seguir com suas vidas normalmente depois daquilo, sem compromissos, sem guardarem o contato um do outro, simplesmente desfrutando a efemeridade de um encontro, atestando como um instante movediço pode conter uma centelha de eternidade. Confiam em sua memória, a única garantia do encontro e infinita em suas possibilidades de reviver o passado.
Os lugares visitados por eles em Viena são depois recuperados pela câmera, vazios mas carregados de lembranças, uma roda-gigante onde ocorre o primeiro beijo, um restaurante que guarda uma conversa importante, uma praça que abriga uma volúpia, isso tudo revela a poética dos lugares, como seus recantos são construídos por histórias, como o tempo se fixa nas estruturas, como a duração, a quantidade, é relativa a intensidade, enfim, como o tempo é volátil, e se comprime ou se expande na medida das circunstâncias. Eles se reencontram na França dez anos depois, mas a lacuna temporal é preenchida pela substância afetiva, pelo vínculo que construíram.
Jesse escreveu um livro e tá lançando em uma livraria de Paris, a partir das entrevistas que ele concede, dá para perceber que o livro é autobiográfico e retrata o encontro ocorrido em Viena, em detalhes, a narração de um dia de junho, clara referência ao Ulysses de Joyce. No fim das entrevistas, Jesse olha para o lado e nota Celine ali no canto, dez anos mais velha, mais magra, com diferente postura mas com o mesmo olhar atento, ela estava ali o tempo todo, contemplando a recepção de sua história. Jesse tem horário marcado para pegar um vôo mas resolve convidar Celine para um café, e assim começa o reencontro.
 Conversando sobre o livro e suas simetrias com a realidade, eles retrabalham a memória, descobrem lembranças discrepantes, discorrem sobre um reencontro que não se realizou, e sobre tudo que aconteceu desde Viena com ambos. Jesse precisou registrar o acontecimento para assimilar toda sua potência, produziu uma obra com isso, reformulou o final, alinhou a narrativa aos seus desígnios, Celine esqueceu alguns detalhes, mas guardou as sensações. Daí se desenvolve uma conversa sedutora sobre o passado a memória, a contingência, pois se o primeiro encontro foi aleatório, esse foi bem mais previsto, o acaso reescreveu suas condições de possibilidade, se tornou necessário, e, tal como Funes, personagem do conto de Jorge Luis Borges, leva um dia para relembrar minuciosamente um outro dia, Jesse e Celine tomam um filme, uma tarde para reelaborar um evento do passado e quem sabe, dar um novo futuro para aquele encontro.
 Alain Badiou diz que o amor consiste em “uma confiança depositada no acaso”, o que é bastante contra intuitivo nos tempos atuais em que se busca realizar o escrutínio de uma pessoa antes de tomar qualquer decisão a respeito de se entregar a uma relação, ou seja, os relacionamentos seguem a lógica capitalista de redução máxima de riscos, tudo precisa ser planejado previamente, o que não diferencia muito os casamentos atuais dos casamentos arranjados do passado. A decisão de Jessie e Celine de reescreverem sua trajetória, testando a consistência do vínculo que criaram num encontro fortuito, desafia essas tendências atuais à esterilidade do afeto. Eles percebem que restaram fragmentos de desejo, de cumplicidade e fidelidade, não necessariamente de um para com o outro, mas de ambos para com o evento do encontro.
 Um momento bem ilustrativo disso se dá em um diálogo no primeiro filme em que Celine diz a Jessie sobre como a existência de Deus, a magia, a mística do mundo não está em cada um deles separadamente, mas, como algo holístico, ela se exerce em uma relação onde o todo é muito superior a mera soma das partes que o constituem. Badiou atenta para uma certa “opacidade do encontro”, que só é superada através da livre fruição das consequências que produz. Ele aponta ainda para uma separação, uma disjunção, que ocorre no filme, pois o amor não se limita a uma relação fechada entre dois indivíduos, mas uma construção articulada por um prisma dual, uma nova forma de ver o mundo a partir de uma dupla perspectiva, apreendê-lo na diferença e não na identidade.
 O final aberto, portanto, do segundo filme, é muito eficiente por representar essa ponte para a consolidação de um acidente no curso natural das coisas. A música que Celine faz para Jessie, revela que o potencial artístico perpetuado pelo encontro também se deu no lado dela, isto é, os dois decompuseram as fronteiras de suas subjetividades ao se esbarrarem e a partir disso, foi difícil reconstituir sua unidade psíquica individualmente.
 No último estágio dessa história o que se tem é o declínio daquela efervescência do início, ambos já estão mais velhos, têm duas filhas e estão de férias na Grécia. A maneira como se conhecem mutuamente é assombrosa, as discussões deixam de ser sobre temas metafísicos ou especulativos e se concentra na concretude dos problemas cotidianos, até a cinematografia se torna mais realista, com cores mais vivas e sem uma estilização evidente.
 As brigas se tornam inevitáveis, um conflito envolvendo o fato de mudarem de país cancela aquilo que seria uma tarde apetecível, de carinho e a transforma em uma experiência carregada de dissabores e sentimentos corrosivos. Aliás, as discussões desse filme impressionam pelo realismo, o ritmo e a cadência em que se realizam, é tão desnorteadora que as vezes se nota até a câmera perdida entre os enquadramentos, Jessie quer ser um pai mais presente para seu filho do casamento anterior, que mora nos Estados Unidos com a mãe, Celine não quer recusar uma proposta de emprego em Paris e se submeter aos desígnios do marido. Com isso eles perdem todo o clima voluptuoso que foi criado no começo da cena, e sublimam sua energia sexual naquilo que ela representa no seu nível mais bruto, um ímpeto autodestrutivo.
 Enfim, quando parece que o conflito alcançou seu clímax e Celine abandona Jessie no quarto sozinho, aí a trilogia tem seu encerramento sublime. Jessie vai até Celine que está sentada sozinha em um restaurante, e começa a ler pra ela uma carta fictícia que ela mesma do futuro teria mandado ele entregá-la numa viagem no tempo mirabolante, assim ele reconquista sua deferência. O que encanta aqui é como o filme fecha metaforicamente um ciclo retroativo de realinhamento do passado a partir do futuro como já acontece no segundo filme, como cada novo abalo na ordem das coisas cria suas condições de possibilidade. Borges para ilustrar isso, dizia que Kafka criou seus precursores, isto é, daquilo que parece meramente casual e despretensioso, nas minucias das trivialidades podem emergir arranjos extraordinários, criando novas direções, sentidos e perpetuando maneiras mais interessantes de se relacionar.
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@Gabriel.gerhardt22
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