A Transdisciplinaridade na Nouvelle Vague Francesa

Foto ( Jean Luc Godard – Francois  Truffaut)

credits- Leon Herschtritt

 

A Transdisciplinaridade na Nouvelle Vague Francesa

.Gabriel Gerhadt

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O objetivo desse texto é modesto, visa apenas descrever o espanto de uma pessoa curiosa, ávida por descobrir novas intuições criativas na arte do cinema, ao se deparar com um movimento de vanguarda bem peculiar.
Com o intuito de endossar as características especificas da poética cinematográfica, de renovar os temas abordados pelos filmes, de dissolver o formalismo engessado dos grandes estúdios, enfim, de dar mais um passo na evolução da linguagem fílmica. A Nouvelle Vague foi um movimento que se desenvolveu entre o final dos anos 1950 e o início dos anos 1960, e, pode-se inferir, foi um dos fenômenos mais importantes na história dessa arte tão nova que é o cinema.
Considerando a vasta bibliografia que aborda essa certa “tendência do cinema francês”, como diria François Truffaut, aqui o intuito é focar em um aspecto marcante do movimento, que pode chocar qualquer espectador desavisado que pretenda desbravar por essas veredas, a saber, a multiplicidade de citações eruditas expressadas nesses filmes, seja do campo do próprio cinema, seja até mesmo no da literatura.
Atentando mais a esse último caso, vale reiterar a influência que alguns teóricos exerceram sobre os cineastas que estavam à frente da Nouvelle Vague, isso se não considerarmos estes próprios diretores como teóricos, haja vista sua prolífica produção intelectual na revista Cahiers du Cinema como críticos, por exemplo. Falo aqui de pessoas como Jean-Luc Godard, François Truffaut, Jacques Rivette, Eric Rohmer, Claude Chabrol, etc., pessoas que já eram ativas no cenário cinematográfico muito antes de fazerem filmes. Ou seja, sua transição da caneta para a câmera foi muito natural, e pode ser ilustrada por um artigo célebre publicado alguns anos antes por Alexandre Astruc, justamente com o título “A câmera stylo”, ou a câmera como uma caneta, um artigo que foi um dos responsáveis por aquilo que ficaria conhecido como Política dos Autores.
É interessante constatar como o empreendimento crítico dessa geração da Nouvelle Vague foi construído com base na crítica de uma certa forma de cinema que vinha sendo feita até então, um formato reconhecido como “tradição de qualidade”. Os críticos da Cahiers, apontavam um esgotamento dessa maneira de fazer filmes, que se estruturava em torno de narrativas romanescas, tanto que os principais roteiristas desses filmes eram também romancistas, ou seja, a “autoria” do filme era sempre reivindicada por esses escritores, uma tendência que ia de encontro direto com a visão de críticos como Truffaut. Ele escreve um texto denominado “Uma certa tendência do cinema Francês”, onde há uma síntese bastante clara de todas essas discordâncias. Lá Truffaut expressa uma visão depreciativa sobre esse engessamento formal do cinema da época, um cinema que se contentava em mimetizar aspectos narrativos do romance, privilegiando atributos literários do cinema e não os atributos cinematográficos da literatura.
Vale ressaltar que paralelamente a esse confronto nos assuntos de cinema, na França também ocorria uma renovação no campo da literatura. Uma geração conhecida como Nouveau roman, composta por pessoas como Nathalie Sarraute, Alain Robbe-Grillet, Samuel Beckett e Marguerite Duras, estava questionando e rompendo com a literatura convencional francesa, marcada pelo realismo e representada por figuras como Balzac e Zola. Dá pra imaginar o peso que esses autores gigantes deixaram sobre as costas das novas gerações, que só poderiam responder afirmando suas especificidades, enfim, suas diferenças.
Essas duas dinâmicas exerceriam influências mútuas uma sobre a outra, isso é bem evidente quando se nota que um dos principais filmes da Nouvelle Vague, Hiroshima mon amour, de Alain Resnais teve um roteiro escrito por ninguém menos que Marguerite Duras. Uma outra forma de constatar essa implicação reciproca, é perceber o que há de comum entre as duas vanguardas, o Nouveau Roman é marcado pelo caráter fragmentário de suas descrições, pelo detalhe minucioso dos objetos na narrativa, pela abolição da objetividade, a prevalência dos gestos sutis, a atrofia da forma, etc. Características também em destaque na Nouvelle Vague, com suas idiossincrasias próprias, como na diferença entre a fragmentação da descrição na escrita e do enquadramento ou da edição no filme.
Portanto, dadas essas condições, ficam bem mais compreensíveis as citações recorrentes a outros domínios da cultura em filmes como os de Godard dos anos 1960, onde é impossível não haver uma citação, direta ou indireta, de livros, seja por um personagem lendo, como no caso de Viver a Vida (1962) ou o próprio narrador, em voz-off, no caso de Alphaville (1965). Essas citações podem parecer gratuitas as vezes, como a citação a Faulkner feita por Patricia em Acossado (1960), quando ela está na cama com Michel, que pergunta “esse é um cara com quem você dormiu?”. Ou podem ter uma influência na narrativa, como nota Susan Sontag ao analisar Viver a Vida, no qual em um dos episódios, Luigi, um sujeito por quem a protagonista Nana se apaixonou, lê o conto “O retrato Oval” de Poe, e esse conto representa uma grande metáfora para as cenas subsequentes do filme.
Esses exemplos se multiplicam por filmes como os de Eric Rohmer, Claude Chabrol, François Truffaut, etc. Esse texto foi apenas uma tentativa de colocar essa pluridimensionalidade da Nouvelle Vague em evidência, demonstrando um pouco as circunstâncias nas quais emergiu essa forma hibrida de fazer cinema. Ao contestar um certo purismo da arte cinematográfica, esses cineastas reinventaram o cinema, que naquela época estava entrando em uma espécie de exaustão com a “tradição de qualidade”, aquele costume formulaico de estruturar a narrativa dos filmes. Como diria André Bazin, o cinema é impuro em sua essência e talvez seja isso que resulte na sua maior potencialidade de disseminação, de gerar deslumbramento, de impactar os espectadores sensorialmente e de transgredir quaisquer prescrições.

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@gabriel.gerhardt22

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7 comentários sobre “A Transdisciplinaridade na Nouvelle Vague Francesa

  1. Belo texto!! Incrível pensar que esse modo de produzir e de pensar se permeia em outros lugares das artes, como no maneirismo e na arte contemporânea, e, até fora dela, sempre com suas intensidades distintas.

  2. Muito bom, adorei as colocações dos exemplos, a transdisciplinaridade é um grande enriquecimento na minha visão e foi uma ótima abordagem sobre, ansiosa pelos próximos textos!

  3. Esse texto me fez viajar no tempo, quando em 1986 fui estudar Francês , na Aliança Francesa, em São Paulo. Tinha conseguido meu primeiro estágio em um grupo multinacional Francês e ganhei o curso! Saía tarde da noite da Aliança para pegar ônibus de volta pra casa como uma colega que nunca esqueci seu rosto. Preciso dizer que vínhamos o trajeto todo falando de cinema? Truffault…Godard… Ela adorava!!! Aprendi a conhecer e assistir a filmes Franceses. Esse texto complementou as “aulas” que tive com essa colega, no busão que partia da Praça da República para o ABC, todas as terças e quintas-feiras.

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