A festa de aniversário

A festa de aniversário

Geórgia Alves

Tive receio de acordar e estar pronta para morte, sonhava com minha festa de aniversário, não à toa. Aprender requer empenho. Dizem os que sabem, exige ir com o próprio corpo. Há inúmeras oportunidades, tanta vida nela mesma. A vida não se vive em números, não são estes somente que colocam uma casa de pé. Quem ergue o edifício se ocupa de pilares sólidos, e quem ama, o que deve fazer? Crer nas estruturas sobre o inconciliável entre o igual e o novo?
Será longa a jornada até descobrir que não se pode apagar tudo com “uma mão de tinta”. Não adianta cobrir de cinza a vida pulsando. Requer ir pelo aprendizado do gradiente das cores
A profundidade dada mais pelas luzes que as sombras, o jogo de claro-escuro sobre o irreversível modo de ver a vida em sua imprecisão. Lembro desta lenda onde um homem cria que aprisionando o corpo de uma moça virgem no mesmo caixão da sua noiva cadáver resolveria o problema. Não é assim. O que partiu, precisa ir.
Causo espanto?
É que em outras épocas, era capaz de tudo pela crença, se poderia esperar de mim apoiar quem clamasse que a moça viva não saísse do claustro, vestindo além do vestido, a alma da outra noiva. Morta. Mesmo com a discordância de toda a vila, não era permitido desabonar o direito de um noivo. Um homem tinha todos os direitos diante dos olhos do vilarejo. Mesmo querendo o sobrenatural, e que o pensamento pensasse como ele, sentisse isso que sente, o direito à reparação pela perda causada pelo sobrenatural.
Hoje não é provável que se acredite nisso? Ainda hoje?
Não mesmo?
Duvidemos das “lições do destino”. Aspas tão necessárias aqui. Que pássaros sobrevoem a carcaça morta. Há crenças e superstições que necessitam mais tempo para ruir, há quem precise miseravelmente delas para seu consolo. Pior, para seu conforto. Enquanto se arrasta igualmente à noiva morta arrastaria a cauda desse vestido de noiva, a moça roubada da vila tem olhos vidrados na tampa do caixão. E durante todo tempo que ficou trancada aprendeu o que não se demovera de sua psiquê em milênios. Pois que convido você, que só me pediu um texto de domingo, olhar por este obturador refinado, este furo de alfinete. A quem enganamos com discursos?
A humanidade indexa, cataloga, torna toda a vida como cárcere da norma. Nada é célere, não aimda. E agora? O que estamos fazendo? Crendo que fizemos um dever de casa. Aprender o novo pela Modernidade. Depois a Pós-Modernidade. Há outra crença, que, no aleatório, um deus chamado algoritmo pode reger meu destino. Deus não existe, mas colocamos no lugar dele o vazio de uma inteligência artificial, que não nos compreende. Estamos mais e mais confusos e perdidos. Longe de nossos sentimentos, sem um pingo de vocação a sermos ainda intuitivos. Deixamos de lado o modo de observar o passado, para nós acervo de coisas mortas.
Vivemos uma vida outra? Que vida outra? Não fomos novamente expulsos do paraíso ? Quem da garantias sobre o futuro? E como se vive o hoje sem lembrar do passado? Como posso viver o novo sem dar nome à matéria outra se não reconheço mais o que venha a ser matéria morta?
Nem tudo no mundo é preciso. Não era. Nem todo tempo é medido em relógio cuco. Não é? O tempo é a marca do pulso? O que não modifica é que o coração pese poucas gramas apenas e que de perto mais pareça um punho fechado, um amontoado de músculos feito para bombear sangue.
Preciso contar-lhes algo: Tive acesso à caixa dos sonhos, vi pessoas mortas, sem haver nisso qualquer traço do sobrenatural. As pessoas que amo, em suas formas, ali falavam comigo do mesmo modo que bem me lembro.  Posso tocar o rosto de cada uma, nem é preciso. Sorrisos bastam.
Fecho os olhos volto a passear por este jardim, tão verde como há muito tempo. O que é permitido a alguém que sabe imaginar? É do que me ocupo agora. Escolhi encerrar o corpo nesta caixa-casa. Escolha que se arrasta como a cauda de rio avançando em córregos e sulcos de terra arrasada. Aprender é abrir caminho pelo território virgem, o que pode o pensamento encarcerado é segredo.
Não devo contaminar seu momento. Compartilho este experimento de noite junina, por infantilidade minha. Vim só com a palavra corrida, não enfeitei nada até aqui. No sonho busco por latas de tinta, bem sei onde estão guardadas. Tinta que tenho há tempos em lugar recôndito.
Não, o mundo não é na cor cinza, nem de prata como nas pontas dos dedos de quem pintou meus fios de cabelo. Experimento o tom oposto, uma tonalidade que está mais para amarelo-ouro como capim dourado que cresce no topo da montanha. A coisa imaginada brilha sob o sol. Aceno, sorrio, sinto os raios em meu rosto. Talvez seja sinal de aprendizado.

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@georgia.alves1

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1 comentário em “A festa de aniversário

  1. Sublime texto, Geórgia!! Passou ele todo na ponta da antena esquerda de um gafanhoto, não foi? Latente como é, só pode ser… toda poesia, naturalmente.

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