Não é sobre você

Sobre o ser e o livro “Não é sobre você”, de Germana Accioly e Mirada

 

Geórgia Alves

Uma obra de arte deve ser lida como um todo. Não é a primeira vez que leio essa afirmação em um livro de Teoria Literária, como ocorre em Arte & Percepção Visual, de Rudolf Arnheim. Lembrei desse livro ao ver desabrochar diante de meus olhos a escritura de Germana Accioly em “Não é sobre você” [do Selo Editorial Mirada, 2021]

Vou reproduzir o conto que me inspirou, por acreditar que as palavras da autora devem acrescentar percepção mais sensível, sobretudo visual, ao texto que o esforço desta análise.
Segue trecho.

Fique bem claro, entrego, nesta coluna, apenas parte das sensações transmitidas, dos passeios a que Germana conduz, e nos leva a fazer em bosques, ainda que desconhecidos, ali inteiros, aqui em fragmentos:

“Solidão no coletivo”

“Morei em Paris. Isso é inesquecível. Depois das primeiras semanas de admiração, e até mesmo de sensação de estar vivendo um verdadeiro conto de fadas, comecei a viver outra fábula. A de passar pelo Arco do Triunfo e me parecer o Marco Zero do Recife; ver a Tour Eiffel como mais um elemento natural da paisagem…[…] Estagiava no _cartier_ chique e morava na _banlieue_ , a periferia. Perfeita vivência. […] Todos os dias também percebia uma presença nada comum. Cabelo branco que fugia um pouco à touca de tricô arroxeada, um sobretudo azul claro muito, muito grosso. […] Aquela senhora francesa estava em casa.” [Germana Accioly]

Uma vez Johannes Wolfgang Goethe escreveu ao amigo Christian Gottlob Heyne, professor de Retórica, em Göttingen: “Como pode perceber, meu ponto de partida é muito terra a terra, e talvez pareça a alguns que tenho tratado o assunto mais espiritual de um modo demasiadamente terreno; mas posso me permitir observar que” – e nessa hora renasci nós bosques, com Goethe – “os deuses dos gregos não eram colocados em tronos no sétimo ou no décimo céu, mas no Olimpo, dando um passo largo de gigante, não de sol a sol, no máximo de montanha a montanha” – e aqui renasci montanha pelas mãos do conto de Germana.

“Aquela senhora francesa estava em casa” – como a própria Germana Accioly cujo fluxo de escrita atravessa um átrio a outro do coração para revelar a si mesma. E que ao emprestar o olhar da memória àquela senhora, nos faz experimentar muito mais que as duas existências envolvidas na cena, e mesmo a bela Paris.

“Não ficava em casa fazendo tricô, nem muito menos ia aos cafés encontrar os amigos. A cada dia, ela escolhia um “parceiro” (sic) de conversa. Com sua voz já meio falha, rouca e bem fraquinha, dava pitaco sobre a educação das crianças. (…) Deixei de tomar o sorvete pra não perder o ônibus. Procurava chegar mais perto dela a cada dia. (…) Até que um dia sentei à sua frente. Ela me olhou e perguntou as horas. (…) Madame me contou que morava no ônibus. Aliás, tinha um apartamento minúsculo na République mas como tinha pavor de solidão, passava o dia inteiro dentro daquele ônibus.(…) Ousei e perguntei o que havia dentro do saquinho. Ela sorriu. (…) Uns biscoitos, alguma baguete, tomates, queijo. Preferia fazer as refeições na companhia de pessoas. Mesmo que fossem passageiros. Não sentia solidão no coletivo”. (ACCIOLY, Germana. Págs, 17 a 19).

Aprendemos cedo que deus se realiza na existência do ser. E experimentamos o conhecimento sobre este fato, na vida em si mesma, o que aliás também foi levado ao universodos livros, a existência é onde o divino se prova. OndeDeus melhor e mais concreta e visivelmente se experimenta. Por isso, o valor da vida e de uma vida é sempre irrevogável, impossível de dimensionamento.Inegociáveis são as nossas dores e tudo que nos relaciona à vida secreta em nós mesmas, nós mesmos.

“Bendita raiva” é outro texto deste livro de Germana. Que não está sozinha em sua aura Poética, sua verve de escrita híbrida aos anos de aprendizagem junto às notas do piano, das tintas e pincéis de uma vida, dos ruídos da Rua da Glória, de Recife, Olinda, Paris, das viagens em suas cidades, do Colégio São Bento, dos amores sem atalhos, mas em fluxos contínuos de um rio sem bordas. De um coração de pulsação forte. Intensa, elevada à máxima potência ao escolher fundir-se à arte de Dani Acioli, nesta obra. Como insistem os sábios, leigos ou mestres, toda obra de arte precisa ser lida como um todo. Em suas múltiplas potencialidades e especificidades artísticas. No caso deste livro de estreia de Germana, que se deu a um tempo maior que de seus fermentos de pães caseiros. O livro nos conduz em seus movimentos ondulantes eáqueos, fluindo a cântaros.

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@georgia.alves1

 

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