Uma entre pernas
Por Geórgia Alves.
Uma perna. Uma perna pequenina saía do corpo. Faz dias. E dias de frio. Não saiu paulatinamente. Fixou em interregno. Embora não tenha sido obrigada a conviver com a estranha forma – ou seria criatura? – Foi deixando. E bem no meio da fenda, um olho. Havia um olho na perna? Havia um cérebro? Nada havia de se estranhar em tempos como estes… O que não havia era forma. O corpo, estranho, era parte. Parte do seu?
A perna pequenina era ela ou ele?
Parte do corpo, partir o corpo, o corpo ao meio, o meio entre as pernas, a forma saída do corpo. Parir ao não parir, seu corpo. Que verbo foi antes do ser da coisa? A coisa? Que coisa? Gente é coisa? Coisa de gente, é coisa ou é gente? Parte de gente é parte da gente? O que a mulher não sabia era o que fazer com aquilo.
Há alguns dias surgira em sua fenda, uma forma. Na sua mínima abertura de mulher, um experimento, em pele, implemento?? A abertura impedida inflamada, foi cicatrizando de passagem ou passagem impedida por um corpo compelido à abertura por um corpo que ainda não era. Não era um corpo? Ainda nem era. O que fazer para evitar um pensamento que fosse sobre a coisa que saiu de seu corpo, ou o corpo que saiu da coisa que se tornou.
Paulatinamente. Então, foi assim.
De uma hora para outra ocorreu-lhe este pensamento. Extrair. Se extirpasse a coisa? Sangraria? Cicatrizaria? Se, numa grande cegueira sobre a coisa sem olho, também sem cérebro, ainda sem forma, ainda, com toda força.
Força de um pensamento que fosse separada daquilo? Sim, se puxasse com força a coisa pensa sairia pela abertura? Suavemente? Era feito um peixe cor da pele sem boca, fechada ou aberta. Assim o era a dor da coisa.
Um corpo, sim, era carne e corpo feito a miniatura de falo. Era mulher, e como poderia seu corpo estar lhe traindo agora? Pensou novamente, de um jeito irado, que faria com aquilo? Então, era hermafrodita e não sabia?
Como pode corpo de mulher descobrir outra forma sobre a que já havia se habituado? Acostumara-se tanto a não saber sobre o corpo? Que loucura caber no corpo de fêmea algo tão semelhante a sexo de homem! Loucura? Estremeceu o corpo inteiro diante do que se estendeu sob a abertura. O membro, em tamanho diminuto, na coisa feminina.
Não conteve o pensamento retrátil, por ímpeto, por medo, via o interim com ou sem novo membro, beirando precipício, dada angústia de não saber. E o que sentiu foi asco? Foi agonia de não-ser? Tanto não sabia, pois, de início até gostava de ideia, talvez seu pequeno membro estivesse inflado, ou por inflamar fez que surgisse túrgido e rígido, para além dos lábios.
Saber nem sabia sequer se era um membro sobre o que não sabia já tinha nada lhe feito de negativo. O não saber é que lhe faria jogar no irreversível abismo. De assalto, decidiu!
Foi puxando, no princípio devagar, com receio até seguir, sem saber de nada, sentindo desligamento terrível de si mesma, era ato impensado? Não pensando, seguiu paulatinamente, depois com força. A firmeza de uma mão que não pensa. Mão que age sobre o estranho membro.
Junto à massa, carne de gente, veio um fio. Um fio e jorro. O vermelho jorrou entre coxas em pequenos filetes vermelhos. Rios singrando a geografia das pernas, sangue de um lado e de outro das carnes, fio de rio, enquanto observa o sangue tingir a carne, segura a pequena forma com a ternura de quase mãe.
A pequena massa de uma carne de corpo, de um quase corpo de gente, do tamanho de um polegarzinho de criança, um bebê… Uma minúscula falange de não-recém-nascido. O mundo é tão tão vasto. Tão tão triste. Tão tão tão mundo.
E aquela carne era nada?
Ou era mundo. Ou era gente. Ou era ela. Ou era deus saindo sem piedade de seu corpo sem fé, tão cheio de mundo?
Sem mais perguntas, guardou a porção de pele. Levaria para exame. O sangue foi estancando, quando já não jorrava, pensou em laboratório. Em laboratório, quando seria isso?
Três dias depois de conviver com o estranho corpo em seu corpo, seis dias depois de depositar a massa disforme em um lenço, um lenço? Um lenço umedecido, comprou seis dias antes na seção de produtos para bebês, seis dias depois de seu luto, cogita o sepultamento.
Vai ser breve, tão breve quanto a vida que a forma não teve. Se faltou deus ou foi amor que faltou, saber-se não houve, palavra não houve. Dias antes, o homem – sim, bem antes havia um homem, dissera a ela, entre lágrima: eu te amo. E qualquer coisa mais. Eu não estou aqui? Amor.
Amor à forma, amor à coisa é que… não houve? Amar ao elo? Haveria, se soubesse da coisa a tempo, amaria. Amar ela o ia? Amar é lia-se. Não deu a palavra. Nem nome. Ainda sem nome, nem vida. Não havendo o verbo, não haveria início. Nem fim. Não ousaria dar um nome ao estranho corpo surgido da abertura que deu.
Que alguém compreenda. Meu abraço fraterno.