A paixão de Dodin Bouffant

A paixão de Dodin Bouffant

Georgia Alves 

Vou escrever 1 frase. Então você me diz: Como a representaria: Ei-la: O sabor da vida. O que é para você: O sabor da vida? A mulher intensa e inteligente na cozinha? Bem, sim, muitos estão de acordo que isto tenha a ver com aquilo que plantamos, colhemos, caçamos, extraímos da Natureza e levamos à mesa? Tudo a ver com nossos dias. Não sei dizer se fui antes tão mais triste que assistindo a este filme. Do quanto senti de dor diante de “O sabor da vida”, como se apresenta no filme La Passion de Dodin Bouffant , com o ator Benoît Magimel no papel do cozinheiro famoso que deu nome a muitas receitas. Que estudava com esmero menus. Há descaramentos, como na sobremesa de claras em neves flambadas ao conhaque.

Antes a película seria chamada de The Pot-au-Feu, assim, tão francês e sem poesia. A panela no fogo. O que já diz muito de um Cinema francês que quer falar para si e sobre si mesmo. Ainda que esteja na interface de um diretor vietnamita. Meu Deus, quanta amargura e melancolia. Há coisas difíceis mesmo de digerir, para além de bom guisado de carne. E que retrato fiel da sociedade que quer saciedade sem a verdadeira aura da vida.

Estetizar demais deixa um gosto estranho deste sabor que se busca na vida de uma elite cercada e feita por homens que estão a subjugar mulheres. E olha que deste universo sou íntima.

Posso falar de cátedra. Estamos tão tristes e doentes, doentes mesmo, de afeto e uma verdade que nos sirva, que precisamos de uma tela grande para reconhecer isso e ainda não enxergar o mal? Que bom que existe Machado de Assis. Antes, o bruxo do Cosme Velho era tão somente o primeiro e maior dos nomes em todas as Literaturas Brasileiras. Hoje, Machadão soa antídoto àquele período. Com todo respeito a Flaubert que parece, não existiu no tempo em que “O sabor da vida” foi concebido. Olha que a película tem de tudo. Dos jogos de câmera à, de fato, arte do Cinema que é escrever com a luz. Explorar a riqueza dos cenários.

Fica a menção à cinematografia de Jonathan Ricquebourg, com supervisão do chef Pierre Gagnaire, e com o perdão da palavra, bem poderia trazer na montagem uma mulher. A beleza da tensão dramática, do êxtase de figurinos, fica de maneira brutal. Crua ou frita. Há inúmeras intertextualidades das pinturas icônicas de Renoir e Rembrandt ou mesmo da tradição do Barroco de Sophinisba Anguissola, sem o editor Mario Battistel, talvez, bem o saber. O que é riso de canto de boca. Muitas vezes o filme é de embrulhar o estômago. Meu Deus. Que desespero senti diante da presença da menina de 13 anos naquela cozinha. Com aval dos pais!

Sim. Era assim. Era? Como está doente a personagem brilhantemente, sempre brilhante, ainda que crua, a Juliette Binoche: Eugènie. Nosso gênio em perceber o sabor da vida, de fato, morreu? Marcel Rouff não descreve essa morte por acaso. Concordo com ele a qualquer hora da noite. Enquanto isso. Enquanto isso, no roteiro adaptado de Tran Anh Hung, é depois de ler esta crítica vocês compreenderam muito mais a busca de um lugar sublime no filme. Eugènie Binoche nos é apresentada em camas e bandejas, como peras em caldas. Para mim isso tem nome e sobrenome. Mas me recuso a falar nisso agora. É, não vou revelar agora. Não deveria. E não vou. Apesar da minha compaixão em dizer a verdade que é o meu trabalho. Perscrutá-la e traduzi-la. É meu ofício não há trinta dias ou meses, mas há 30 anos!!!

Faço disso pois é o que leva o pão à mesa e preciso dizer. O filme estrelado por Juliette Binoche, extraordinária atriz e ícone da Cultural Ocidental herdada pelos cinéfilos. É entregue bela e crua. Bem assim, além dela, sou também afeita à verdade e sua tradução em palavras, assim me defino: cinéfila porque não me arrependo de ter visto o filme, mesmo quando no íntimo me desagrada.

Outros, de fato, me fizeram abandonar antes a sala. Bem antes. Não é o caso. Aguentei lenta e atenta a gradual tortura impressa pelo filme que não era mesmo para estar em uma cerimônia como a do Oscar. Com todos os defeitos da Academia, meu Deus. O que é o trabalho artístico que revela tamanha perversidade com tamanha calma por quase “três” horas? E são duas. A gente esquece o quanto é importante para o espírito de uma mulher querer viver por ela e seus sentidos. O quanto o sofrimento de ser obrigada a deixar a porta aberta, dentro e fora de um casamento, é sinal de submissão e não de desejo legítimo.

Enfim.

Assistam, e o façam de estômago vazio. Porque nada do refinamento e da frieza que estamos acostumados nos dias de hoje pode apagar os horrores dos superpoderes masculinos abalizados pelos modos vividos no século XIX. Permitam o incômodo: A título dos títulos. Das benesses aos barões e homens da nobreza e realeza. Tudo o que esta época nos revelou foi: Quanto se pode ser capaz de sofrer em silêncio, sendo mulher bonita e inteligente. Empregada por um homem.

O filme deixa sim contribuição quase impecável: Ora, se toda Literatura Pré-Moderna não precisava mesmo que ser revista? Nem preciso explicar que Lima Barreto fez bem isso. Se Madamme Collette não era um grito. Ainda bem que temos Machado de Assis. O Bruxo do Cosme Velho nos cura. Desde então. É ler, em seu caráter futurista, as memórias póstumas de Brás Cubas, como bem o disseram Robert Schwarz e João Cezar de Castro Rocha. Eu digo que a vida é bonita. Mas, sem tantas exigências por parte de um homem que não a autonomia, a liberdade e o gênio verdadeiro de uma mulher, fazendo dela coisa recolhida e objeto de quem deseja saborear, fumando cachimbos, o sabor da vida.

@georgia.alves1

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