Um Deus que não passeia sobre as águas
Um Deus que não passeia sobre as águas
Geórgia Alves
– O livro de Israel Pinheiro.
Desperta sensações que para descrever aqui é precisar perguntar: Que horas são? É uma pergunta e uma provocação. E que provocação.
Robert Schwartz publicou pela Companhia das Letras este livro de ensaios dedicado a Marilene e Modesto Carone a primeira palavra do livro é o nome de Oswald de Andrade. Neste primeiro ensaio, recupera uma frase de Lenin “que o Estado, uma vez revolucionado, se poderia administrar com o conhecimento de uma cozinheira”. Israel vai provar que o líder estava certo e errado. Entre às mais destacadas sensações que experimentei remeteu a filmes que resultaram de grandes roteiros.
Aqueles com a marca indelével da extrema capacidade de síntese, escritos por trabalhadores do Cinema. Israel é um trabalhador incansável e inteligente da palavra. O seu talento é tão evidente, capaz de vidrar olhos mesmo de espectador habituado à concisão de Hollywood. E a persistência da escrita redonda. Calculada. Medida em cada suspiro.
O livro parece brotar do principado da escrita devoradora de palavras dispensáveis, a mais precisa de todos os tempos. As novelas têm como um metrônomo interno e só grandes mestres – ou maestros – são capazes de alcançar narrativas tão dinâmicas e cheias de humanidades como estas, em ritmo de anamnese, uma forma esmerada. Com Humor também. E não vou me remeter ao prefácio de Anco Márcio Vieira Tenório, pois já o fiz – ao vivo e em cores – pelo canal do YouTube. Quem tiver a curiosidade espiche o dedo até o link e vá ver.
Vale o tempo: (https://www.youtube.com/live/CtYtmHZ7utA?si=TGgCZmjqdqoR6Asl)
Um Deus que não passeia sobre as águas devolveu o contato, pela primeira vez, com a precisão dos filmes Crash (Paul Haggis, 2005) e Shame (Steve McQueen, 2011), por diferentes e iguais motivos.
Um recorte de uma casa, um quarteirão e ali cabe o mundo inteiro. Do mesmo jeito que as cenas se passam em ambientes fisgados do tecido da memória, se transportadas para o outro lado do planeta funcionariam sem susto, dada a engrenagem interna. Preciso dizer que há uma secura cabralina da engenharia dos afetos. E, a meu modo, refazer isso: O livro de Israel Pinheiro é produto de luxo e deve ser tratado de acordo. Se fosse um vestido de gala deveria custar o preço de um carro, só pela técnica de acabamento, seria coisa da mais fina e alta costura.
Uma peça de Samuel Becktt
Israel é uma espécie de Becktt inventando recurso novo, que não a repetição, para fazer ver toda intersubjetividade que leva à solidão e alienação. Sua base ontológica arremessa no melhor ponto do debate entre Modernistas. Não quero que tome em paralelo com o absurdo de Albert Camus, mas a base das tramas, afina com a falta de sentido. A inexistência de um propósito para a vida na terra, há sim a ideia de seres absortos que fatalmente só desejam o mal um do outro por inveja ou sem qualquer motivo. Seres para os quais o único caminho é viver sem conhecimento, nem dinheiro ou laços familiares.
Nenhuma instituição se mostra suficiente ou, pior, eficiente para quem queira encontrar o Letmotiv. Nada do gesto Kantiano de subsistência da Educação para preservação das humanidades. Viver por gestos ou costumes validados à formação. Nada disso. Tudo que Erwin Panovsky se utiliza enquanto no princípio fundamental à arte: o peso da pena que julga encontrar equilíbrio entre o grotesco e o sublime.
A perfeição, quase que buscando ser divina, se aplica à forma. Não aos descaminhos escolhidos pelos personagens. O homem de Israel Pinheiro não tem passado. E se o tiver, melhor seria que nunca nada o tivesse acontecido. Se tem um futuro, também não interessa. As personagens pautam ações pelo mais fundo remorso e baixos afetos. São invariavelmente arremessadas no grande vazio da existência. Um gigantesco macio e oco nada, de onde um fundo mais fundo sempre os aguarda.
Melhor para este homem seria agir pelo não agir. Feito Batlerby, o escriturário. “Prefiro não”.Se virmos cada novela como um filme, é possível afirmar que seus argumentos são construídos em nenhum escopo ontológico da velha e boa filosofia.
Exceto pela tendência do ser-para-a-morte. O jogo da dialética não busca ancorar-se na ideia de um conatus a serviço da racionalidade, do estilo de ser para a vida, mas em pulsões mais-que-selvagens. Há um princípio válido, ao fim? Não. Um silogismo? Só um que alimente o grão de esperança que haverá deleite entre rabanadas de Natal? Não. E isso é seu fundamento. Exceto para que toda escolástica dê conta do remorso, do ressentimento, do imenso vazio da alma, toda extração do mim-mim-mi a fórceps, sem dó. Quando não do ódio de saber das circunstâncias e quão estão – e estarão sempre – para sempre engessadas.
Ódio ao saber da imutável realidade desfavorável posta e infeliz. Que pode guardar aquele tipo de felicidade estou que só se observa quando se dá a Sísifo uma facilidade de mover a pedra, deixá-la rolar, trocar uns e-mails e mensagens mais fulgurantes e, no dia seguinte, rolar ladeira acima tudo que o sistema exige do sugeito.
Mesmo que o sujeito não a suporte, não lhe vira as costas. Ainda que para a dolorosa e cruel infância, Jonh lá esteja a observá-la. Mais. Não vire a cabeça sob o risco de se tornar estátua de sal. Mas arremesse um tijolo nas memórias, com argamassa suficiente para sufocar e emparedar a Rua Nova. A amargura escorre do sangue e se mistura ao esgoto a céu aberto. A idiotice humana não tem limites. E pode sempre piorar quando alguém, que se espera menos estúpido, é obrigado a exercer a infeliz função de recolher provas. Lamentavelmente esbarra na mesquinhez infinita de quem não respeita os mortos. “Nem os muito ricos, que dirá os mortos, que dirá as velhas que sustentam seus netos”, grita alguém no fundo da sala, do tempo da palmatória.
Contrariamente, a mesma narrativa guarda fôlego para odiar na mesma intensidade que admira e há uma certa cumplicidade na adoração das formas femininas, até que se mexam na cena. Basta que abram a boca para cruzarem a perigosa linha do retrato sórdido e concreto de toda condição humana. O retratista a postos. No caso da adolescência ferida é capaz de estourar tímpanos com palavras de escrutínio dos infernos humanos. Há comiseração por esta criatura, há, até que prove: Não vai desperdiçar a chance de desenvolver em seu processo de adaptação à maldade do mundo o mesmo grau de péssima índole das outras personagens. E vai encontrar seu ceticismo em uma medida que a satisfaça. Que vingue suas mágoas. Da boca de pós-infante saem expressões lapidares, o mais in-levado repertório de palavrões de baixíssimo escalão. In-convites também foram mencionados na leitura do YouTube. Então: Sirvimo-nos de um trecho na história:
“Essa família é um balaio de gato. Moram na mesma casa, a mãe, três filhas, um filho e uma neta. O pai é falecido. O pai era um prodígio, ele cresceu na roça, só estudou até a quarta série e foi superintendente da Receita Federal. Os filhos fizeram faculdade, mas são uns merdas”.
Bem se vê que o narrador bem entende que Deus não circula entre corredores das universidades. Que o ódio, mais uma vez, é um caldo grosso e vasto a ponto de se fundir ao feijão com arroz servido à mesa da família, que divide o quinhão herdado do pai somente graças ao bom senso do funcionário do banco. Caso contrário já haviam se matado.
Neste lugar onde a polidez é mero cacoete da arrogância de quem se acha superior por ser filho legítimo. Aliás, alguém que arroga superioridade para si: Um parasita miserável, espúrio, cuja péssima influência para a filha adolescente certamente não fará mais que confirmar que dois e dois nunca serão cinco. Além da “cara fechada o tempo todo”, consegue a proeza de ser “mais sisudo que os ministros do STF proferindo votos”, sem jamais tal condição possa caber nem na décima geração à frente. A pose, avisa o narrador, “é a pose da realeza”. Fixei este olhar, grande parte, na primeira novela (dia de exame), porque a rigidez se mantém, até a última (natal em jaboatão). Quando a técnica culmina tão perfeitamente que são incontáveis as quedas no mais desprendido dos risos às mais sonoras gargalhadas.
Quem precisa de referências externas, teses grandiloquentes, citaçôes, comparações, quando o talento, sem nenhuma explicação lógica, explode bem diante dos olhos, mastigando a matéria-prima mais primitiva e autêntica? Os diálogos são cirúrgicos, para não adjetivar demais. O que permite que leitores, mesmo menos experientes, deslizem sobre as linhas da narrativa sem esforço. A dor é cortante, sim, mas a capacidade de síntese é de quem domina o bisturi da incerteza da vida e soube cortar na carne com leveza de especialista. De mãos sem o menor sinal de tremores, de uma humanidade. Digo isso e recorto:
“Eu tenho muita pena da adolescente que vive nesta casa. Quando ela se comporta como criança, as tias gritam: “Vai tirar o queijo, menina!”. Esse é o nível da realeza”.
No fundo do ouvido o tic-tac que rege a mão destra do autor acompanha a desfaçatez daquelas existências. Um cronômetro se põe do lado de fora das narrativas e só falta avisar, como dispositivo eletrônico, tipo Alexa, que calcula o número de almas decaídas, naquele dia. Pela mesma fração de segundo e pelo mesmo mecanismo que um funcionário de uma grande corporação passa seu crachá na catraca, acusando o tempo dedicado à sua morte em vida.
Observe que o narrador, começa a fugir a regra. Depois de sentir pena da garota, também foi capaz de ajudar no socorro da matriarca daquela família. “Que horas eu iria conseguir dormir? Eu tenho que estar em sala de aula às 6h50”. E aí está. O professor no contrafluxo da história. É ele quem está sendo submetido a um exame em meio a tantas almas perdidas. Ele tão soterrado, emerge leve.
E do relógio salta um cuco: “Meio-dia em Recife parece outra vida”.
Riso porque ninguém é tão de ferro e sem coração quanto o homem de lata.
Acontece que depois de deixar o coração vazio, Israel Pinheiro vai conduzir leitora e leitor a atravessar a cidade, passando por Boa Viagem até um Natal em Jaboatão. Insisto, não hei de mencionar nada do que dito em lives e leituras anteriores. Do prefácio reproduzo apenas trecho da contracapa: “Todos os sentimentos e expressões que vêm acompanhando a humanidade em sua saga sobre a terra são explorados, sem concessões”. Sem concessões. Então, dito isto, preciso cometer justo o pecado que o autor desvia em toda a construção da obra, dar apenas este espaço conclusivo às palavras do narrador final: “Por alguma razão, eu pensei que Catarina tocaria alguma música americana e, à exceção de Rebeca, que aprendeu inglês por conta própria, ninguém poderia acompanhá-la. Mas eu errei”.
Vou continuar porque está tão bom isso que até dói.
“Catarina tocou Giz, de Legião Urbana. E foi lindo. Todos nós cantamos juntos. A sala se iluminou. E foi emocionante porque cantamos como um tributo a Beatriz. Catarina nos fez parte de algo sublime. Vivíamos um verdadeiro Natal em família, que não era presente, não era comida e nem bebida. Era aquele brilho no olhar de cada um de nós. Rebeca deixou as lágrimas caírem e eu me lembrei do rosto do nosso pai”.
Uma perfeição. Técnica narrativa, ritmo. Time! Eita, em inglês não! Pegada!: Seu livro é de rara experiência com o tempo. A organização de uma escrita fluente não elimina a condição de estar diante das atrocidades do mundo. Claro que não. Mas dá uma sensação boa de morte linear. Eternidade. Outro narrador do livro explica como a melancolia do Natal se transformaem outra coisa, quando o sistema promove esse tipo de folga da engrenagem: “adia um pouco o fluxo de notícias ruins”. Afinal, o livro termina com uma enxurrada de riso graças aos diálogos construídos brilhantemente. As cenas ali experimentadas são lidas de maneira vivíssima! Vivida!
Tudo lindo, tão maravilhoso.
Até Samuel, que apresentava a namorada Catarina à família, se levantar. Descuidar de levar com ele, o celular. Aí, a lua cheia, as estrelas, o violão no colo da mocinha, tudo que era lindo, a última estrela no ceú, vai desaparecer. Por que? Talvez porque o sol – ainda que seja milhares de vezes menor que uma só das três Marias – quando nasce, ofusca tudo.
E assim é a Natureza das coisas. Assim é a Natureza do sol. Um istmo de tempo, uma fístula e tudo se rompe. A tensão do que foi para debaixo do tapete. O afeto que não passou pelo filtro de conhecimento espinosiano. E bum. O relógio. A bomba relógio. Não sei porque motivo lembrei da versão de William Galison para lenda antiga. Sei que há outras explicações ao fato de que, ao meio-dia, a cidade mais quente que se tem notícia queria ser melhor que Paris e Roma. E o é. Em certos momentos. Lugares. Não sei explicar. Recife, Vitória, Pernambuco é assim e pronto!
Melhor mesmo é não explicar tanto.
@georgia.alves1