AMANTES – DUAS FACES DE UMA PALAVRA.
AMANTES – DUAS FACES DE UMA PALAVRA.
Antônio Pimentel
Há bem tempo, vi o filme Lembrança de um amor eterno (La Corrispondenza, 2016), de Giuseppe Tornatore. Uma bela surpresa. O que me atraiu primeiro foi o ator Jeremy Irons. Gosto de suas interpretações. No filme, ele é o professor Edward e vive uma história de amor com a estudante Amy, interpretada pela atriz Olga Kurylenko. Ele é casado. Ela, solteira, sabe e está disposta a seguir com ele. Os dois têm encontros esporádicos, bons encontros.
Críticos torceram o nariz para o filme, que não é uma obra-prima, mas vale a pena ser visto. O que encanta nele é a história de amor, com foco no seu desfecho. Mortalmente doente, ele prepara um conjunto de cartas, vídeos e mensagens que ela recebe, aos poucos, depois de sua morte. Os dois se despedem. Momentos de tristeza. Fim de linha para ele. Tempo de luto, acomodação e retomada para ela.
Edward e Amy são amantes. Eles se amam. Mas são amantes também na conduta transgressora que a palavra expressa. A mulher dele não aparece, mas sua filha deixa claro o mal que a história trouxe para a família. Ela respeita o amor do pai. Diz para Amy, a amante, que tem inveja porque sabe que nunca será amada como ela. O amor dos dois supera a carga negativa que a sociedade dá à condição de amantes. As demais pessoas que aparecem no filme têm atitudes de respeito e reverência diante da história dos dois. Não há censura, mas carinho e cuidado.
Cresci aprendendo que ser amante é algo censurável, depreciativo, uma nódoa na vida das pessoas, principalmente de uma mulher. Uma das definições para a palavra amante no dicionário é “pessoa que mantém relações extraconjugais; amásio, amásia”. Amantes são, para muitos, moralmente corrompidos. A palavra ganhou também essa conotação pejorativa.
Conheço uma mulher que carrega essa pecha pela vida. Era casada e manteve durante anos um relacionamento amoroso com um homem também casado. O romance foi ficando visível. Ele ganhou fama de safado. Ela, o rótulo de amante. Os cônjuges traídos, de cornos. Melhor dizendo: chifrudos. O povo do bairro era bem direto e cru na rotulação. Essa história quase acabou em tragédia. Ficou no quase, mas foi capaz de gerar sequelas para as duas famílias: tristezas e rancores crônicos, fragmentos rodrigueanos. Tudo isso escondeu o principal: os dois se amavam. Por formação e conveniência, foram incapazes de buscar a separação nos respectivos casamentos e a vida fora da clandestinidade. Viveram por mais de 20 anos um amor cercado de limitações e angústias. Ela, a certa altura, ficou viúva. Ele não conseguiu se mover. Não soube.
Um ponto que me intriga nesses casos é a palavra amante ser tão maltratada. Por que tão severa censura a quem ama? É o amor que acontece atropelando casamentos constituídos? É o amor que desrespeita convenções e paradigmas sociais? Creio que sim. A reação contra os amantes é uma punição à violação de regras socialmente estabelecidas. A sociedade pune quem considera transgressor e arrasta para a lama uma palavra bonita. Por que essa palavra, logo ela, ganhou conotação tão indigna? Não sei a resposta, mas acho que foi um tiro no pé. A mesma palavra que condena, liberta. Ser amante é amar. Tudo de bom.
A senhora que conheço, hoje avançando para além dos 90 anos, disse para minha mãe, sua amiga: “Ele morreu. Eu estou aqui, velha, cheia de dores e usando andador. Mas nossa história foi muito boa. A gente aproveitou a vida”. Poderia ter sido melhor sem a condenação social e com o abandono de casamentos fracassados para viver o amor na sua plenitude de potencialidades e riscos. Não foram capazes, mas aproveitaram o que puderam. Valeu! O valor está nos momentos de prazer e alegria. Momentos que fazem a glória dos amantes e cutucam o fígado de bisbilhoteiros e inquisidores.
@antoniopimentelbh
26/02/23