EU, CAÇADOR: MEMÓRIA E INCORREÇÃO.

EU, CAÇADOR: MEMÓRIA E INCORREÇÃO.

Antônio Pimentel

Comecei com bodoques, estilingues, atiradeiras, sinônimos da arma usada na minha adolescência para matar passarinhos, ratos, lagartos, pombos e outros pequenos viventes. Dois desafios marcavam o trabalho de fazer um bodoque dos bons: conseguir uma câmara de pneu de bicicleta para cortar duas tiras elásticas e encontrar uma forquilha bem desenhada e resistente, um galho de árvore bifurcado em forma de Y, com boa base para empunhadura. Goiabeiras e pitangueiras forneciam ótimas forquilhas. Um pedaço de couro completava o material. Pequenas pedras arredondadas, bolinhas de gude e pelotas de chumbo serviam de munição.

Com a atiradeira em punho e munição no bolso, eu andava atrás de caça. Lotes vagos, matagais e as margens da estrada de ferro que cortava meu bairro eram meus territórios. O quintal de casa, com mangueiras, bananeiras, pitangueiras e goiabeiras, foi outro local de espreita. As galinhas de Vó Vita, ciscando no terreiro, tentação constante. Nunca atirei nelas. Um primo atirou num galo, que ficou estropiado e recebeu o apelido de Dr. Valcourt, personagem de Sérgio Cardoso na novela “O Preço de Uma Vida”. Adão ainda jogava pião…

Minha caçada era esportiva. Os bichos não eram consumidos. Valia a boa estilingada, a destreza, o abate. Confesso que não fui exímio atirador. Conheci vizinhos campeões de pontaria. A turma fazia torneios com lâmpadas queimadas, vidros, espelhos e latas servindo de alvos. Dias de farra e referências aos filmes de faroeste. Todos sonhando ser um John Wayne do estilingue e falando uma língua embolada, mistura de fragmentos de inglês e português.

Influenciado pelos filmes de Guilherme Tell, arqueiro certeiro e incansável combatente das tropas do injusto burgomestre, mandão local na Suíça medieval, fabriquei uma besta, arma parente do arco e flecha, com maior sofisticação e potência. Usando uma base de madeira, barbatanas de guarda-chuva e fios de arame, fiz a nova arma, que não funcionou a contento. Não obtive sucesso na modernização da minha capacidade de extermínio. Ainda bem que não tentei imitar Guilherme Tell na cena clássica do filme: ele acertava uma maçã colocada sobre a cabeça do próprio filho, superando um desafio do perverso vilão. Meus irmãos escaparam por pouco.

Com insistência, avancei no mundo das armas. Meus pais me deram de Natal uma espingarda de ar comprimido. Arma em punho e chumbinhos de munição, segui aprimorando a pontaria. Treinava em casa com alvos diminutos e partia para a matança. Passarinhos eram as vítimas: pardais, rolinhas, curiangos, bem-te-vis e até beija-flores. Uma vez – glória do matador – fui contratado para matar pombos que infestavam o telhado de uma vizinha. Andava pelo bairro com minha espingarda e nunca fui repreendido. Hoje, acho descabido um adolescente armado zanzando por aí. Creio que atualmente eu seria advertido, teria a arma apreendida e, no limite, cairia abatido pela polícia ou milicianos.

Mudamos de bairro. Fomos morar numa região sem canalização de esgoto. Os ratos circulavam à vontade, alvos privilegiados. Matei inúmeras bubônicas criaturas, numa louvável ação sanitária. Da varanda de casa, vigiava os sinistros visitantes que surrupiavam milho no galinheiro e atacavam pintinhos indefesos. Cheguei a matar seis ratões em um dia de tocaia.

Dois tios militares, caçadores e pescadores, foram incentivadores dos estilingues e armas mais potentes. Adolescente, caçamos pelo interior de Minas Gerais, usando duas espingardas: a cartucheira calibre 28 e o rifle 22, Flober. Filhos e sobrinhos eram autorizados a atirar. Preás, coelhos, pombas, macacos e aves diversas foram abatidos. Os tios achavam que aquilo era aprendizagem de macheza, coisa de homem. Um jeito de divertir e educar. Ótimos passeios.

O tempo passou. Deixei de andar com a espingarda pelo bairro, mas atirava em ratos e passarinhos no quintal de casa. As críticas e contestações apareceram e ganharam corpo. Parei com minha sanha de matador de passarinhos. Ratos, hoje sumidos, continuam alvos de abates. Sem perdão.

Conto essa história para mostrar como os valores, atitudes e condutas mudam. Caçar era passatempo, diversão inocente. Ecologia, palavra inexistente Hoje, caçada é crime e “incorreção política”, onda que não me seduz. Melhor: é incorreção civilizatória. Falta de civilidade, grossura, crueldade. Mudamos. Os passarinhos agradecem.

@antoniopimentelbh

09/10/22

 

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