Ave Sangria

Ave Sangria

Geórgia Alves

Por trás de um nome vai sempre uma história. E às vezes, história tão funda que escorre sangue. Espero que esteja em canto confortável, porque a prosa é longa. Quando o grupo Ave Sangria foi criado, o país atravessava uma das fases mais obscuras de toda sua História. A capa do primeiro (e único!) LP. Nem bem estreava no MainStreaming da época e o grupo já seria censurado e transformado em marginal. “Por quanta lama ensanguentada já andei”. Carnal, marginal, sangue puro jorrando da história de uma música brasileira que nunca foi dada a ouvir mesmo antes de descartar. Do contrário. Prefere o que se pode descartar em pouco tempo. Aquilo que diz pouco, que leva ao menos ainda. Ave Sangria toca fogo em fulgor mortal no cinismo de uma época que não figura apenas no passado. Que passado? Quando nos demos um futuro? Quando nos daremos ao futuro Futuro?

Os papéis a que nos propomos nos últimos quatro anos não foram o mais arcaico e horrível de nossos passados ou estou vendo flores em vendavais? A linha tênue e inteligível, inteligente ao ponto de dar ao hétero uma mágoa no coração por não ser amado por outro homem e ninguém entende dessas coisas não é porque não saiba, não é porque não queira. É porque quer mostrar que não pode. Que não pactua com sensibilidades, fragilidades. Deste sangue de um mesmo bairro é feita a música do Ave Sangria. Que vem dando o sangue por sua música que sempre foi tocada, por meia dúzia de cabeças e corações apreciada. Meia dúzia que aqui ali se multiplica em milhares diante do palco a girar e girar, feito girassol.

Não viu quem não quis que a banda gravou músicas criadas recentemente por Almir de Oliveira, Ivson Wanderlei e Marco Polo Guimarães Martins. Outros nomes somam à composição: De Juliano Holanda a Júnior do Jarro, Gilú Amaral a Zé da Flauta. Outros nomes somam à história de sua composição. De Agrício Noya a Ismael Semente Proibida, de Paulo Rafael ao Grupo Anjo Gabriel, Lula Côrtes, Zé Ramalho, Alceu Valença, Marconi Notaro e Lailson, Flaviola e O Bando do Sol com quem Ave Sangria partilha um tempo de mar e musgo. Semente e ervas daninhas que cresceram incontroláveis apesar dos mecanismos de controle e autoflagelo do mercado da música, das artes e da comunicação no Brasil.

Também, pudera. Música que prega o amor, amor entre homens, e um deles declara que vai morrer! nos “dentes de Ofídio”, caso seu amor correspondido não seja enfim revelado! Ah, pelo amor de deus, pelo seu Valdir… dá um tempo, não é mesmo? Ninguém aguenta tanto disfarce, pra quê tanto jogo de cena? Afinal, as pessoas até gostam de mentira bem contada, mas essa daí tá difícil de engolir. Até porque se for ler de trás pra frente, a ordem dos fatos alteraria o produto? Qual a lógica que quero impor com meu discurso? Qual o resultado deste jogo, do truque empreendido por uma composição tão banal, leve, frívola até? Uma canção que fala em brinquedo, apito, cetim… Só sei que nada sei deste mundo. A verdade é que ninguém nunca sabe ou irá saber e a graça é a dúvida, o jogo, por outro lado, o revela também a rigidez e a severidade. Se faço questão de afirmar com veemência, se carrego no amargo das palavras, no ódio, na opressão de alguma coisa que escapa pelo avesso do que espero traduzir com palavras. Palavras, aparências, jogos, liberdades e severidades. Taí um sangue jorrando nas veias do Ave Sangria, desde que cada um teve seu destino e volta a pensar em conjunto sobre ele.

Estes homens reunidos em volta de musas, deusas de madeixas de todas as cores, de sardas e promessas em seus ventres. Homens com flores nos cabelos compridos que lutaram tanto para preservar também o tamanho de suas cabeleiras. Num tempo em que deixar o cabelo crescer era dizer que a conexão com essa Natureza dos fatos que se estende em narrativa, a exemplo do que já acontece aqui. Estes homens e mulheres de uma época onde tudo que se quer é fazer amor e pedir por um pouco de paz. Nem paz nem guerra demais. Homens e mulheres que não querem formar nada, interromper ninguém, cortar nenhum galho de qualquer matéria prima. Sem modelar, moldar, enrijecer, só mesmo deixar viver e crescer ao sol, como girassóis fazem. As sementes plantadas nos olhos, ouvidos e bocas destes homens e musas deram fruto e as próximas gerações vão entendendo que a rigidez de quem quer ser manda chuva não está com nada. Não é de nada quem quer impor à força a própria vontade. Ave Sangria a mim, seduziu faz tempo. A mulher, a cidade, uma carne bem servida…

Seduzindo, cantando em tons e semitons, Marco Polo, Almir e Ivson vão passando de geração em geração, sem forçar absolutamente nada. Nada de macho beta, gama, alfa. Nada de nada e um tudo. Uma base bem feita de baixo, um solo de guitarra, um efeito bem casado com o espírito híbrido e a força somente da Natureza que resta de tudo isso como proposta de uma música feita de sangue, suor e lágrimas em defesa de beijos, abraços e relações afetivas, amorosas. Cheios de amor para dar aos ouvidos surrados por pancadas em todos os lugares, de uma rigidez da forma física que vai esgarçando o tecido das relações, mesmo as superficiais que deveriam sobreviver como barquinhos flutuando por córregos e acostamentos em dias de chuva.

Ave Sangria.

@georgialves1

23510cookie-checkAve Sangria

Deixe comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos necessários são marcados com *.