Certa que há outras vidas em silêncio
Certa que há outras vidas em silêncio
Geórgia Alves
“Quando a vocação para a vida começa a empalidecer e também nós, os delicados, os esvaídos. Aceitar o desafio da Arte. Da loucura. Romper com a falsa harmonia, com o falso equilíbrio e assim, depois da morte – ainda intensos – seremos um fantasminha claro de amor”. Lygia Fagundes Telles, A disciplina do amor, partiu aos 98 anos. (19/4/1923 a 03/4/2022).
Cetáceos são mamíferos com altíssimo grau de comunicação. Seres gigantescos que se alimentam de minúsculas criaturas e hospedam outros organismos minúsculos na pele dura. Quase de pedra, não sentem mais quantos outros seres vivos hospedam. Enquanto para eles somente o mar aberto se apresenta. E, de vez em quando, a superfície. Dizem que os golfinhos eram seres terrestres, se alimentavam do que havia na terra e o ar da atmosfera respiravam. Como foram parar nos mares, é a minha pergunta?
Será que por amor às baleias?
Se estiver mesmo empenhada em dar conta de todas as minhas obrigações, vou esquecer de mim e começar a fazer tais reflexões sobre estes outros seres, de quem estamos, em geral, bem esquecidos. Esquecer e lembrar é um jogo do qual nem baleias, nem golfinhos, muito menos nós, seres humanos, escapamos. Borges, Górgias, Freud. Frida e Rosa Luxemburgo. Lembro de cabeça que existe um lugar chamado Heidelberg onde sequer estive, mas ao estar lá, alguém de quem nem bem me recordo, enviou um postal onde ia escrito: “lembrei de você”.
A vida em fases. A força em frases. A vida é pulsão e batimento. Movimento de sístole e diástole. Quero ser uma vida que pensa, que mede cada passo. E continuo vendo feras e lembrando da imagem de um coração urbano que ainda pulsa. Certa de que há outras vidas, não viverei a minha. Havia em mim o propósito de partilhar com vocês, o que aprendi. A metáfora, a alegoria, Aristóteles e a mimesis. Meu modo diáfano está cada vez mais objetivo. Meus objetivos estão cada vez mais subjetivos. Etéreos.
Não sou nem concretista nem parnasiano.
Não escrevo por sacro ofício um manifesto. Nem em gesto sagrado irmanado pela Arte e a Literatura, porque não sou movimento, mas fragmento, disperso. Porque procuro um verso, encontro um risco. Um recado. Uma frase solta em guardanapos. Uma sombrinha em que pinto uma ou duas palavras. E minha Sofia se dissolve em pingos de chuva. Ainda busco representar a anima. O meu ânimo é olhar os animais em fagocitar figurativo. Se quero me entender com as cores e as tintas, é porque meu verso está cada vez mais pálido. E não serei nem matéria, nem subsolo da realidade. Perdoem Marx e Sigmund.
Anita para mim será sempre de um torso amarelo.
Da ciranda de pedra de Lygia sempre restou o verbo. Estes tempos de mares de plástico. Ainda resta a película em preto e branco para colorir depois. Como retrato da baleia, do golfinho, do coqueiro, do paraíso invadido. Das cercanias do dia carbono. Este ano nem morro, porque tal parte já foi. Se lembro e escrevo, pinto um rosto, é porque, em silêncio, esqueço quem sou.
Creio em outras vidas e não vivo. Em tempos de pedra, partiu Lygia.
@georgia.alves1
Maravilhosa homenagem à maior contista da língua portuguesa. Meus parabéns.
Foi Lygia Fagundes Telles que me fez apaixonar pelo conto e conhecer outros contistas famosos, mas não com seu humor sutil.
Uma vez um garoto de 4 a 6 anos, em uma dessas homenagem, perguntou se ela estava viva. Ela respondeu que sim, porque a literatura não a deixava morrer. Lygia nunca morrerá em meu coração.
Grata, Valdi. Espero ler também as suas reflexões. Grande abraço!