E se pulássemos?

Jaque Machado 

Encolhemos os dedos dos pés na borda do balcão pegando o aço inoxidável, sentimos a saia balançando nos joelhos enquanto desejamos ser tragadas pelo céu do piso. Se nos jogássemos da cozinha e lá embaixo fosse o firmamento? E se fosse possível dançar no ar quente da fritadeira pra sentir alguma coisa? E se nós nos jogássemos no óleo fervente num rompante de amor próprio e fugíssemos feito aranhas para as teias nos armários suspensos. Se pulássemos nas nuvens de fumaça da cozinha, carregadas pelas próprias pernas cheias de asas, de passos aéreos, enquanto nosso vestido velho se debate nas coxas e nossos peitos são atravessados por puro ar gelado.

O freezer aberto, lufadas do ártico nos seios suados. Atravessaríamos nuvens de gelo, gelo em cubos, que escorregariam na nossa pele quente. E se caíssemos enquanto retalhamos tomates carnudos no ar, vermelhos e suculentos que depois se desmancham e formam a bolha escaldante no molho que nos fere: estamos vivas.

Não seria breve o saltar da bancada contra o soalho, tem um milhão de quilômetros de rebeldia entre a pia e a panela no balcão de porta arriada. Pular em direção ao céu da cozinha, que tem mais de cem andares passando borrados subindo em alta velocidade, enquanto se vai em direção ao espaço. Antes de pular ainda olharíamos todo aquele céu lá embaixo, caindo ao contrário, afrontando todo o azul estariam nossas unhas dos pés mal cortadas e cheias de esmalte velho, nossas pernas cabeludas, o fogo ligado queimando a chaleira vazia: adeus.

Um último alívio seria nos jogarmos da pia mais alta, mergulhando no chão de gases atmosféricos, enquanto as bocas do fogão explodem atrás de nós.

Existe um abismo azul no piso frio da cozinha, na tijoleta com cheiro de cloro e cera, tem um vulto de mulher estaqueado depois do almoço, segurando a vassoura e querendo pular no céu um milhão de vezes.

@jaquemachadoescritora