Sobre a urbs e do que somos feitos

Sobre a urbs e do que somos feitos

Geórgia Alves

O arado deixa entrever apenas a ponta do dente, ficando escondida a curvatura dele. Tal dente, antes que se conhecesse o uso do ferro, deve ter sido constituído apenas de um pau curvo muito resistente, capaz de fender as terras e de ará-las. Tal curvatura chamou-se entre os latinos urbs, de um antigo urbum, “curvo”, dando a entender que as primeiras cidades, todas, sem exceção, fundadas em campos cultivados, surgiram com deixarem-se estar as famílias, por longo tempo, retidas e escondidas em meio aos sacros horrores dos bosques religiosos. E, porque tais redutos se encontraram em todas as nações gentílicas, traduzindo uma ideia comum a todas, chamaram-nos os povos latinos luci, isto é, “terras queimadas em meio ao recinto fechado dos bosques”

Trecho do livro “Princípios de (uma) Ciência Nova

(acerca da natureza comum das nações)

Giambattista Vico, Editora Abril Cultural.

 

Itamar Vieira Júnior já está ocupado com a repercussão de seu novo livro, Doramar ou A Odisseia, e meu fluxo de leitora em ninhada com estudos e aulas ainda me faz com que deseje somente agora falar em Torto Arado.

Atribuindo isso à vida que tenho vivido, como tantas pessoas que se recuperam das perdas, tão partida quanto um mosaico. E há muito o que entender ainda nesses hiatos. Soando como um badalo estes trechos de afetividade que deixo passar em branco arremessam cada vez mais naquilo que Camus chamou de absurdo. Não por acaso, venho chamando de abismo. Porque todo problema da humanidade começa na linguagem.

Talvez por isso ande relendo as obras que mais marcaram minha trajetória de leitora. Torto Arado se passa em uma região que tive a chance de conhecer. E foi um dos melhores lugares que conheci de todo chão que atravessei nessa vida. Um povo tão negro e bonito, de uma região tão poderosa e densa de todos os valores de matéria-prima que não sei porque chamam de chapada. É mais que feita por camadas e camadas de história geolítica, que nem sei se é uma palavra que existe, mas aposto que me entendem.

Bibiana e Belonísia são como as avós de cada uma e cada um de nós. Tão feitas das memórias da infância quantos as narrativas que perduram desses lugares criados pela memória. O arado, por exemplo. Se preciso entender um livro é bom que comece pelo título. O que há de torto há de vivo em um título assim. Em movimento. Não tive como não me sentir nos tempos bíblicos lendo trechos como o que descreve o momento em que as irmãs descobrem a mala debaixo da cama da avó.

Seria muito óbvio dizer que o livro reescreve nossa história e nossos afetos bem mal resolvidos por humanidades que resistem à forja do tempo e do mal? Crendo que sim prefiro mencionar novamente este livro antigo, A Ciência Nova, de Giambattista Vico:

O arado, com certa majestade, apoia sua extremidade superior na parte fronteiriça do altar, a fim de fazer-nos compreender que as terras aradas foram os primeiros altares da gentilidade”

Um trecho que não termina senão revelando o que não era bom, nem tão “do bem”:

“, e para realçar a superioridade natural que os heróis acreditavam ter sobre os seus sócios, representados estes [os sócios ou fâmulos], como dentro em pouco iremos ver, pelo tirante, que parece inclinar-se até a base do altar” (pág. 16. Os pensadores. Princípios de *uma* ciência nova – acerca da natureza comum das nações).

O sangue escorrendo da faca é uma imagem tão poderosa quanto a natureza da região de onde Itamar extrai sua história. Não admira que o livro há nos alçado coletivamente em êxtase e ultrapasse as barreiras do que ficou conhecido pelo palavrão de “best-seller”. É naturalmente compreensível e necessário que tais celebrações aconteçam.

E, em geral, antecedam grandes crises. Longe de mim olhar pelo retrovisor da história, mas prometo atualizar na vida que inventei dar mais importância às leituras e já próximo domingo empreender com o autor baiano uma nova viagem. Destemidamente em ritmo bem mais acelerado.

 

@georgia.alves1

 

 

 

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