Corpo Estranho

Jaque Machado

Semana passada toquei no pescoço e senti uma protuberância preocupante debaixo do queixo. Não dei bola, e sabe como é…Casa, trabalho e filhos, a vida atropelando. Filha, vai ao médico, tá feio.

Assustada corri ao banheiro. Podia jurar que aquela bola de carne tinha dois pequenos olhos se abrindo. Benze que passa! Coisa boa não é!

Alô, Dr Cláudio, tem horário? Na quinta, certo. Obrigada!

A caminho do trabalho pensei ter escutado algo, o freio do ônibus e a porta a gás arrastando. Imaginação!

Sentada atrás da registradora, o olhar de todo mundo direto no caroço, levantei a gola, mas não pude esconder, estava imenso, doía como o inferno.

No café escutei de novo, a marmita de arroz, feijão e ovo frito no colo: psiu! Ei! Olhei escada acima, estava sentada nos degraus, não vi ninguém. Depósito vazio. Não me ignore!

Sacudi a cabeça, imaginação?

Transporte, casa, o resto de café na pia. Louça, roupa suja e vassoura. Banha e põe as crias na cama. Caí dura feito pedra enquanto a mãe incomoda reclamando de tudo, dizem que é sono.

No espelho de manhã, bocejando e bagunçada, mal conseguia dobrar o pescoço para cuspir o creme dental. Uma olhada mais criteriosa: dois olhos piscando no meio das carnes do caroço, apertei as vistas, mas era isso! Um pequeno orifício envaginado naquela coisa abria e fechava. Tenho que sair de você, o caroço. Não aguento mais!

Meu Deus! Quem é você? Queria tirar aquilo de mim de uma vez… Sou você de saco cheio, falo, falo, falo, não me ouve. Parece que vai morrer do coração todo dia nessa vida de merda. Eu quero é sair daqui, cansei de falar sozinha! Embuchei papel higiênico naquilo! Repugnante!

Dr, Cláudio, o que é isso? O médico estalou os olhos para a coisa que murmurava abafada. Não sei, mas o certo é cortar fora esse corpo estranho, AGORA!

A coisa amoleceu assim que saiu de mim, fechou os olhos devagar e suspirou uma última vez. Um silêncio triste no depois: ainda bem que não era nada de ruim.

@jaquemachadoescritora