MISTÉRIOS SOBRENATURAIS….
MISTÉRIOS SOBRENATURAIS….
Pedro Santos
Depois de algumas divagações, retorno ao presente para buscar novamente o meu passado. E neste recomeço, meus pensamentos me conduzem ao misterioso terreno do misticismo, do sobrenatural… da feitiçaria, das crendices que habitavam meus tempos de criança. Minha mãe sempre foi muito categórica em nos proibir de aceitar “coisas de comer” oferecidas por certas pessoas: podiam ter algum feitiço. Era comum a gente ouvir também que fulano tinha o “olho ruim… que cortava até arame farpado só de olhar”. Despacho em encruzilhadas eram comuns nas esquinas de nosso bairro, com galinha preta, cachaça, farofa e velas. Ai de quem chutasse aquilo… o feitiço entrava corpo adentro! Tratar desses temas hoje, com a ótica de meus tempos de criança, é visto como preconceito em relação às religiões de matriz africana. Quem não acredita no poder dos orixás e das demais divindades do “Candomblé” e da “Umbanda”, na magia de seus rituais, classifica tudo isso como bobagens de gente ignorante. Não penso assim, tudo é possível, nenhuma religião pode buscar para si o monopólio místico da existência. Mas naquela minha meninice, era melhor não duvidar dos alertas de minha mãe e de outras pessoas mais velhas. Me lembro que o meu irmão, João José, arrumou um “negócio” na sola do pé… um ferimento, que não sarava de jeito nenhum! Remédios caseiros, farmácia e até médicos tinham tentado um jeito de curá-lo, mas nada adiantava. Só ficou bom mesmo quando um benzedor fez suas orações no local. Segundo este curandeiro, meu irmão tinha pisado em algum “serviço” destinado a outra pessoa, mas acabou pagando o pato. Do mesmo modo que havia as pessoas do mal, tinha também os benzedores e benzedeiras para consertar os malefícios sobrenaturais. Minha avó, Maria Rita, mãe de minha mãe, era uma dessas. “Quebranto, mal olhado, vento-virado, cobreiro, carne-quebrada”… seu menu era bem variado. Cansei de vê-la em nossa casa atendendo pessoas, que chegavam com seus filhos para serem benzidos… e tudo de graça. Mais conhecidos que minha avó, havia muitas e muitos… como o “seu Jesus Benzedor”, o “seu Levindo”, que foi até eleito vereador em 1996, por obra e graça de sua vasta clientela de rezas. Mesmo tendo nossa avó à disposição, eu e Benfica Júnior, meu irmão, resolvemos recorrer a uma outra do ramo… mais conhecida como “Inhá”, rezadeira que morava perto de nossa casa, na Rua Higino de Faria. Parece que um tremendo olho gordo tinha nos atingido… era um desânimo de fazer dó, tudo parecia que estava dando errado e resolvemos (caladinhos!) procurar a tal mulher, para dar um jeito na coisa. E fomos. Mas no caminho até lá, passa por nós uma mulher do outro mundo… daquelas de parar o trânsito do inferno com sua beleza e formosura! Foi quando quase quebramos o pescoço… olhando para trás, em direção àquela gostosura diabólica… meu Deus, que alma era aquela?! Mas seguimos nosso destino em busca da cura. Era uma casinha simples, cor de rosa, de telhado apenas… como a maioria das casas daquela época. Batemos à porta, atendeu-nos um velha de cabelos grisalhos e espetados… nos encarando com seus olhos profundos e negros … sorrindo com sua boca desdentada. “O quê que ceis precisa meus fio?” “ Nóis veio aqui pra senhora nos benzê…” “ Benzê de quê?” “ Mal oiado.” “Ah…então entra.” Entramos naquela salinha, guarnecida com um sofazinho velho… uma mesinha no canto com uma “Nossa Senhora Aparecida”… na parede um retrato antigo de uma pessoa mais nova, que devia ser ela quando moça. Uma coisa já começara a nos assustar: não parava de entrar gatos na sala… uns dez eu cheguei a contar. Todo mundo sabe que as bruxas gostam de ter pelo menos um bichano, preto de preferência, mas a “Dona Inhá”, ainda que não voasse de vassoura, tinha gato que não era brincadeira! Credo! Enquanto ela foi lá dentro… ficamos nós dois na sala, um olhando pro outro… quando… a porta da rua de repente se abre… e quem entra para nos matar de vergonha?! Sim, a mulher do caminho! Aquela que nos deu um torcicolo e nos encheu de esperança de estar mudando a nossa sorte! “Oi! Minha tia tá la´dentro?” Nenhuma resposta saiu de nossas bocas abertas. Ela passou, tão perfumada, pertinho de nossos narizes… e foi em direção à cozinha. De lá não saiu mais. Tivemos que nos contentar com a volta de dona Inhá, com seu andar de vaca velha, com um copo d´água na mão e um enorme terço no pescoço. Acho que ela nos benzeu, não me lembro bem… minha cabeça só tinha ideias para sua malvada sobrinha. De lá saímos, sem qualquer sensação de alívio, confesso. Por muito tempo carreguei a dúvida de ter sido a chegada daquela mulher naquela casa apenas uma miragem… mas não poderia ser, pois, meu irmão também a viu! Só se foi coisa do inconsciente coletivo. Entre crer e não crer, segui pela vida acreditando no poder de certas pessoas. Já falei em linhas passadas sobre a “Dona Terência”, uma vizinha nossa, que foi uma das primeiras a me receber, quando chegamos na rua onde moramos (“aquela senhora que sempre me pedia alguma coisa…”). E de tanto pedir, ela um dia resolveu retribuir-me com uma muda de árvore, que não sei se chamava “beijo” ou “dama da noite”… uma que possui um aroma forte e agradável em noites de verão. Virou uma bela árvore, que dava uma flor rosa, que cheirava muito… mas que manchava o piso, ao cair e apodrecer. Minha mulher ficou bem intrigada, quando um dia encontrou Dona Terência em nosso jardim amarrando a nossa árvore com arame farpado… dizendo que era para que ela “crescesse endireitada”. Achou aquilo estranho, “parecendo coisa de feitiçaria”. Alguém já comentara que ela, em tempos passados, era dada a esses “costumes malévolos”. Nunca tive certeza disso, mas numa esquina mais abaixo de nossa rua, apareceu um daqueles despachos de galinha e tudo. Não posso dizer que tenha sido ela… eu não vi e ninguém falou isso para gente. Mas a ordem de minha mulher foi cortar a nossa árvore. Tentei resistir… mas obedeci. Contatei um conhecido que trabalhava com podas e cortes e ele fez o serviço de limpeza. Quando cheguei do trabalho, ele me esperava para receber, como tínhamos combinado. No lugar da minha árvore estava agora apenas o chão com algumas de suas folhas. Ao pagá-lo, ouvi do mesmo, em tom de brincadeira: “Ô Pedro, eu devia cobrar mais… deu um trabaião danado, sô… oia dentro da caminhonete o tamanho da raiz!” E era mesmo grande! Mas não foi só isso que me chamou a atenção. Não sei se comentei que Dona Terência tinha um “defeito” no pé, uma anomalia física, passando pelo calcanhar, até o joelho, com um aspecto nada bonito… igual a um “cupim velho de formigas”, ficando muitas vezes enfaixado para proteger as feridas. (Coitada, deve ter-se agravado por falta de um tratamento adequado para aquilo!) E quando olhei a raiz na carroceria do veículo… percebi sua estranha semelhança com a perna de Dona Terência. Não vou negar o que se passou em minha mente, que aquela pequena muda que um dia ela me deu, trazia em suas entranhas alguma intensão misteriosa e maligna que eu nunca cheguei a saber o que era. Pode ser que aquilo tenha sido apenas uma coincidência alimentada por um momento de tola crendice. De toda forma, um outro fato, alguns anos depois, ressuscitou minhas dúvidas acerca dos mistérios de Dona Terência. Foi quando eu resolvi repintar uma famosa obra da grande Tarsila do Amaral, o “Abaporu”, que eu fizera numa parede do mesmo jardim da tal árvore. Na repintura da obra, eu quis fazer uma homenagem aos “negros do Congado”, uma tradição religiosa do meu bairro e da cidade, pintando aquela figura como uma pessoa negra. Quem conhece o “Abaporu” sabe do enorme pé da pessoa sentada, criada por Tarsila. Gostei do resultado da mudança… mas com o tempo, a parede, ”exatamente no pé, bem no calcanhar, subindo até o joelho”…começou a formar bolhas, trincar e soltar cascas. Tive a mesma sensação de quando vi a raiz de minha árvore arrancada: parecia novamente com o pé defeituoso da minha dileta vizinha. “Ela queria mesmo ter um pé na minha casa”… foi o que eu pensei, ao vê-la sentada em seu tradicional banquinho, na porta da casa onde mora. Se é possível uma coisa dessa em pleno século vinte e um, confesso que até agora não fez nenhum efeito negativo em nossas vidas. Tudo vai dando certo, graças a Deus! E Dona Terência sempre nos tratou muito bem. Certamente, são momentos de credulidade sem sentido que nos pega em nossos vácuos de fraqueza. Continuo convivendo bem com ela, mas, por via das dúvidas, sigo ainda mais ferrenhamente os antigos conselhos de minha mãe: de “não aceitar coisas de comer dos outros”… e muito menos “coisas de plantar”!
(Esta história faz parte de minhas anotações pandêmicas, “PUXANDO PELA MEMÓRIA”, que vai reunindo o que me lembro de mim mesmo e dos meus.)
@opedrosantosde