Uns Bichos


Fernando
Balduino

Uns bichos

Na imundice do pátio, viu Bandeira um bicho. Antes canídeo, felídeo, roaz ou volátil; mas não: era homem. Homem que, para uma existência completamente pública, metamorfoseia-se em superfície de anteparo mínimo, à lamerci de um bom-samaritano, de frequência oasiática, a contribuir com sua causa invisível. Pudera literal e maravilhosamente metamorfosear-se, faria mais diferença a sua existência; mamífero, melhor, pois desses compadecem-se mais os homens da cidade. Fosse outro filo, como houvesse grandes insetos monstruosos pelos largos, novamente contentava-se a população. É a naturalização, eia!, grande barreira condicional. Condição sim, pois à procura mesma do agradável, vem essencialmente o motor vital.

Ora funesto ou injusto, o instinto humano é traído por contradições. Não vencendo, na feita, a revelação de ordem animal – contemplação do agradável supracitada –, é a ação oculta das aventuranças que faz crítica ao instinto: tende primeiro, nas mesmas atividades biológicas, à repugnância – ou antipatia, para evocar a retórica aristotélica – pura e simplesmente. Se, por outro lado, comparáveis as feições à psicologia toda dos fenômenos espirituais – como as metáforas; aos animais, antropomorfizações  –, nascem formas mil  de afetos e jogos que consagram o agradável. A construção, portanto, do presente e obsessivo afago pelo animal doméstico é puramente espiritual, porquanto não são favorecidos por alguma razoável tendência ao progresso, e nisso limitam-se a códigos morais primitivos; recompensando, ainda, o tratamento cortês tanto respeitariam a etiqueta da mesa de jantar. Eia, pois, outro desafio: desejo inconcreto, acompanhado por uma ‘intuição natural’ pelo nojo; ambas inerentes – como proposto acima – da condição humana.

Finalmente, reconhece-se uma empresa ideológica genealogicamente traçada (pelo menos) desde o Projeto Naturalista de Zola, insistente em recontar as tradições pseudocientíficas da seleção racial; fazendo, pois, crer na cousa da sobrevivência adaptada, e que já todos estão determinados pela gênese milenar da espécie, sem legar do processo como parte mesma do conhecimento e do fenômeno. “Não tinha ninguém para dar um tiro”: saudou certa vez a notável figura do Executivo, repetindo seus mantras eclesiásticos do abate impessoal e naturalista, excessivamente trágicos, mesmo para um cenário político tão medieval quanto o atual. Qual o grande tipo de cumplicidade que lhe é atribuída? Não se sabe responder. Fosse o mais torpe dos repressores, carrascos ou fascistas, parecem sempre cúmplices aliviados. Não vendem mais a ideia da mansidão e honraria humana, mas vendem inaptidões dignas de maus-tratos: no mais, bichos.

Ó vil contradição naturalista! Que haja consciência a cerca da zoomorfização dos milhares de seres humanos mal nutridos, e repensada a prioridade dos projetos luxuosos para o conforto do animal doméstico. Que os umbrais urbanos sejam iluminados e descobertos, com efeito, no mesmo espanto do poeta libertino – Meu Deus!

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2 comentários sobre “Uns Bichos

  1. Fernando, seu texto denuncia uma trágica negação, a que somos co-autores dessa situação. Isso é responsabilidade e resolução nossa.

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