Conte de como um dia o amor foi proibido

Conte de como um dia o amor foi proibido

 

Victor Fernando

Pelo que chegou até a mim, através de um longa conversa com a anciã de uma tribo, há muito tempo, não se conta o ano porque ele se perdeu nas inúmeras interpretações da história por ilustres autores e autoras, mas supõe-se datada durante a segunda metade do século XIX, uma região no sul da Itália foi marcada por um decreto. Um dia o seu prefeito decretou, perante uma Assembleia amontoada de políticos e com todas as portas e janelas abertas, para sua voz entoar para todos os cantos da cidade: “está proibido o ato de amar, assim como demonstrar qualquer afeto, seja em público ou particular. Contudo, o amor-próprio, esse permanecerá. Quem for visto transgredindo essa lei será condenado à morte.” Antes mesmo de ser oficializada, o que aconteceria um dia depois, a lei aterrorizou todos os habitantes daquele lugar, tão pequeno, que nem aparecia nos mapas da época. “O que ele está pensando para dizer que não posso amar?” perguntavam entre si todos os habitantes. “É um louco!”, exclamavam outros. “Como vou ser feliz sem amar?”, indagavam-se alguns. Abordado um dia na rua por um cidadão que estava furioso com o novo decreto e indagava os motivos que o levou a fazer isso, o prefeito respondeu fria e secamente, sem nenhuma demonstração de remorso “na guerra entre as cidades, não é possível haver amor, nem compaixão. Isso que fiz foi uma maneira de preparar o povo – e não o fiz por piedade a eles – a não sentir medo nem altruísmo diante do inimigo indefeso e defender a cidade, não por causa de um sentimento nacionalista, mas por puro egoísmo, que é um motivo forte. Agora deixe-me ir, pois estou atrasado para a minha pescaria.”

A primeira semana do decreto foi mergulhada numa desordem perante a adequação à nova regra. Nesse tempo, alguns fugiram da cidade, mas outros, pelo anseio de começar uma nova vida em outro lugar, permaneceram. Aos que ficavam, restavam-lhes apenas o receio, pois ninguém sabia como agir sem o amor e todos tinham medo de demonstrá-lo sem o perceber e sem saber, pois, a lei não esclarecia como deviam se portar. Todos os dias sete militares de baixa patente espionavam cada casa da cidade e asseguravam que os moradores não estariam amando ou sendo amados. Essas investigações aconteciam à margem do conhecimento público, de modo a que quando enfim foram descobertas, a população ficou alvoroçada. A ciência das investigações veio à tona em um momento já muito borbulhante: duas semanas antes, uma criança fora executada na guilhotina por ter protegido um filhote de cachorro que estava abandonado na rua. O prefeito, como um ditador aos modos romanos, apenas decretou a execução com um polegar positivo. Para ele, nada disso era mal. Na verdade, diante da população, nos dias de comício, dizia com fôlego, que “não existe nem bom nem mal, nem perfeito ou imperfeito.”

Com o tempo, surgiram os defensores do novo decreto, que eram também os correligionários do prefeito, e os que se opunham a ele. A cidade tranquila transformara-se no cenário onde uma guerra política desenrolava-se – não digo intelectual ou filosófica, pois para isso é preciso que haja um interesse intelectual ou filosófico, o que, de fato, não tinha. As Assembleias públicas tornaram-se um palanque político para ambos os lados. Os que estavam para lá, do lado do prefeito, apontavam as incongruências dos de cá.

Uma noite, logo após o sol se pôr, o prefeito fez um comício com um discurso dotado de paixão e filosofia. Alguns protestos rasgaram-se pelas ruas, mas de nada funcionaram, pois o prefeito mandara contê-los com os mais violentos gestos.

Alguns gritavam pelas ruas os seus brados de louvor à Revolução Francesa. “Nos tempos dos franceses, guilhotinava-se.”, exclamava uma revoltosa, em cima de uma caixa de madeira que fora posta no meio da multidão. “Mandava-se para o cesto cabeças degoladas da aristocracia. Façamos o mesmo.” No dia posterior ao discurso, reuniram-se alguns para discutirem uma possível revolta, seguida por uma tomada de poder e restauração da ordem anterior. Depois de arquitetado todo o empreendimento, foram às ruas chamar o povo para o a revolta. Mas como fazê-lo? Pelas ruas e becos passeavam oficiais do prefeito, cujos olhares não deixavam passar um único suspiro ou olhar desviado de algum transeunte no outro lado da calçada. Pelo que aponta a anciã, ambos concordaram com a seguinte ideia: criar um idioma que, de longe se assemelhe ao italiano, mas que não o é. Assim, começaram a matutar e meditar na ideia, até que, após vinte e sete dias de trabalho, criaram uma língua nova, usada apenas para ocasiões como a que viviam. Chamaram-na “paratae”, junção das duas primeiras letras de cada palavra da frase em latim parva atra aetas (pequena era das trevas). Para sua divulgação geral, cada qual ensinou aos próximos, às escondidas o novo idioma, e estes passaram-no a diante, assim como uma ideia chama outra. E assim foi indo, até que tiveram um grande número de companheiros.

No dia marcado para iniciarem a revolução, porém, foram surpreendidos com um Judas. Acontece que, na tarde anterior ao ato, foram ter novamente à casa dos encontros, que foi sempre a mesma, para assegurar que tudo estava nos conformes. Triste ideia essa. Encontraram-se em torno de nove horas da noite, quando todos estão recolhidos em suas casas e as ruas pouco iluminadas. Acontece que lá encontravam-se cinco pessoas e dentre estes, um iria traí-los. Este “um” foi um rapaz de vinte e cinco anos. A sua fisionomia não tem interesse. Atentem-se somente ao fato de ter vinte e cinco anos e estar com o “rabo preso”. Sete dias antes, estando à falência, foi ao encontro do prefeito, mostrar todos os planos e arquitetações. Pediu-lhe, em troca, dinheiro suficiente para viver em paz por quinze anos.

-Quinze anos? – Perguntou-lhe o prefeito, surpreendido com a quantidade que pediu.

-Sim. Não quero mais que quinze anos de paz.

-Se quer que seja feito assim, meu amigo, pois assim se fará. E sorriu malignamente. Abraçaram-se e apertaram as mãos, selando o acordo. Porém, só receberia após a prisão de todos os envolvidos. Vendo que o rapaz se empalidecera e ficasse inquieto, o prefeito disse essas palavras de brandura: acalme-se. Você foi meu companheiro e está do meu lado. Apertou seu braço de leve e continuou. Quero apenas me assegurar de que todos eles estarão presos.

Os líderes, porém, mudaram os planos. Antes, iniciariam o ataque às guaritas da polícia cinco horas da manhã, momentos antes de trocarem de turno. Decidiram iniciar três horas antes. Ao ouvir isso, o rapaz despediu-se e foi ter com o prefeito à sua casa. Disse tudo o que se passara e todos os planos novos. O prefeito pensou longamente e concluiu ser o mais adequado que se trocassem os turnos dos soldados duas horas antes, para que os cansados dessem lugar aos mais acordados.

E foi assim que, na hora combinada, armaram emboscadas para os revoltosos. Não tendo eles mais que porretes e as próprias mãos para a luta, enquanto os soldados estavam armados das mais cruéis armas, foram neutralizados. Preparou-se um julgamento no mesmo dia e foram condenados à morte cinco líderes. O jovem judas, porém, ao cobrar seu pagamento, fora preso e levado à prisão, onde passaria a vida trancado em uma cela minúscula e fria, com pouca iluminação e com apenas uma mal refeição por dia.

Passou-se cinco anos da revolta e todos estavam acostumados com o modus operandi. Não mais incomodavam-se com os soldados os vigiando, nem mais com o fato de poderem mais amar. A revolução ficara no limbo do esquecimento. Agora, todos sentiam-se amargurados e engasgados com alguma coisa na garganta, que queria sair, mas não podia, seja pela ansiedade gerada pelo medo, seja pelo medo em si. A cidade foi ficando fria, pois todos perderam o amor, alguns até o amor próprio. Agora, andavam feito mortos e falavam como mortos. Um simples obrigado se tornou raro, e até valia agora como um xingamento. Após um ano, todos já estavam indiferentes uns com os outros. Ninguém protestava diante de uma injúria contra o próximo, ou até contra si mesmo. Nada mais fazia sentido para os moradores daquela cidade, que agora agonizava de dor.

@ich.binvic

 

 

 

11900cookie-checkConte de como um dia o amor foi proibido

Deixe comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos necessários são marcados com *.