Estamira persevera
(Estamira,2004, por Marcos Prado)
Estamira persevera
Gabriel Von Gerhardt
Um filme capaz de sacudir até as estruturas mais sedimentadas, Estamira é uma descarga de potência que se efetua em quadros, planos, luzes, sons, registros, um fluxo de sensações que se aglutinam e se dissolvem ao redor de uma figura (ou várias?) enigmática, com um formato documental marcado pelo entusiasmo em acompanhar sua estrela, protagonista (ou seu cometa, como indica a própria Estamira).
O projeto acompanha a vida de Estamira, uma senhora que vive como catadora num aterro com seus amigos, mora num barraco e foi diagnosticada com psicose crônica. A maior parte das cenas são filmagens dela discorrendo sobre os mais diversos temas, desde a obsolescência das escolas até a decadência dos nominalismos clínicos. Já se constata desde o início que Estamira não se enquadra nos sistemas sociais vigentes, e, na medida em que as cenas se sucedem, vai ficando nítido que o problema não está nela.
É brutal o contraste entre a vida de Estamira no seu trabalho, com seus amigos que não negligenciam sua sensatez e a vida com os familiares, estes já contaminados pelo discurso clínico-religioso, que tentam cristalizar seu devir através de rótulos limitadores. Ela passeia entre esses terrenos, sempre afirmando sua potência, que ora é contemplada como lampejo da mais sagaz lúcidez, ora é carimbada com a tinta da depreciação e da catalogação apática. Isso vai evidenciando aos poucos como a esquizofrenia não é um fato da natureza, mas mero produto de relações, que por vezes perdem seu caráter diagnóstico-funcional, e se tornam prescritivas, nocivas para aqueles sujeitados a elas.
Os melhores momentos dessa experiência são aqueles em que Estamira desenvolve seus monólogos, rodeada por uma câmera que tenta dar conta de enquadrar toda a expressividade polifônica e polissêmica que ela representa, existem momentos em que ela literalmente não cabe na tela, sua figura excede esses registros, transborda o enquadramento.
Falando, por exemplo, do “trocadilo“, esse conceito reiteradamente trazido àtona para condensar sua revolta contra os rumos da humanidade, ela afirma que já não existem mais inocentes, isto é, todo mundo sabe (que todo mundo sabe) o que está acontecendo. Uma constatação muito perspicaz, respaldada pelo pensamento filosófico recente, que se encontra as voltas com o problema do cinismo, um mecanismo descoberto pela ordem neoliberal e patriarcal que transfere a ênfase do seu declínio para uma espécie de sátira consigo mesma, e dessa maneira, promove um adiamento de sua dissolução.
Como diria Jacques Lacan, o problema atual já não consiste em constatar o declínio do patriarcalismo, e nem tampouco se contentar com este vislumbre, mas operar em cima das possibilidades que este processo abre em relação a políticas de emancipação, mas toda essa dinâmica é obstruída pelo cinismo, isto é, uma continuação virtual de uma ordem em plena decomposição. Como sintetiza Vladimir Safatle, “é como se vivêssemos em uma sociedade em que os pais estão mortos, mas não sabem disso”.
Além disso, outro recurso astucioso que Estamira apresenta para descrever os donos do poder é a ideia do “esperto ao contrário”, uma descrição auto-explicativa daquilo que é mais tecnicamente conhecido como Ideologia, um conceito seminal que descreve o processo de mistificação (ou inversão), operado pelo sistema de ideias, das reais condições de espoliação desempenhado dentro de um contexto socio-histórico. Isto é, uma falsa descrição de uma realidade verdadeira, que artificialmente alinha os objetivos dos exploradores e dos explorados, promovendo aquilo que Herbert Marcuse definia como sociedade unidimensional. No caso de Estamira, o tom provocativo de sua enunciação revela ao mesmo tempo o caráter ideológico dessa posição “esperto ao contrário”, e a estupidez desse arranjo, ou seja, “o contrário de esperto”.
Outras passagens auspiciosas do documentário são aquelas em que se retratam a relação de Estamira com seus filhos, quando estes a censuram por não se inclinar aos dogmas da igreja, por se comportar como uma “possuída” pelo mal, no que Estamira responde das maneiras mais provocadoras, gritando e proferindo blasfêmias. Ela não acata nenhum tipo de hierarquia (do grego “hieros” ou “sagrado” e “arkhein”, “comando”), pois foi capaz de assimilar espontaneamente a erosão desses paradigmas, enquanto a maioria das pessoas tenta substituí-los por formas mais seculares de manifestação hierática.
Ela representa tudo aquilo que resiste às sujeições, não submete seu corpo aos registros normativos e os documentaristas demonstram ter consciência disso ao não arbitrarem em nenhuma circunstância, ao deixarem que o espectador depreenda sobre quem está realmente com problemas. Estamira é alguém que incorpora o “esquizo”, aquele fenômeno descrito por Deleuze e Guattari no Anti-Édipo que condensa a efervescência do desejo, é nômade, efetua uma difusão de movimentos errantes, desterritorializa, afirma a vida em toda sua multiplicidade, cria planos de consistência, modula intensidades e desenha linhas de fuga.
No final, há um plano fascinante que cartografa um instante de paroxismo.Estamira se encontra em uma praia, os sons das ondas se misturam com sua voz, com seus gritos, ela conversa com o mar, reflete sobre o sol, as luzes se dispersam sob a tela, a fotografia fica ofuscada como a espuma das ondas, os cortes são frenéticos, há uma polifonia sonora, uma justaposição de sensações, projeções pictóricas oscilantes, uma volatilização das formas, os sentidos se esvanecem, os contornos se rasgam, são fluxos que atravessam a tela e tensionam quaisquer nominalismos. Foi assim que se conduziu a apresentação de alguém que, dentro de nosso arranjo social farmacopornográfico, é tratado como improdutivo, fútil e, no limite, perigoso.
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@gabriel.gerhardt22
Excelente texto