OS SONS DA VIDA

OS SONS DA VIDA

Ludo Santos – Primavera de 21

As duas Hepburn entraram muito cedo na minha vida. A belga naturalizada inglesa Audrey chegou estonteante no filme “Guerra e Paz” que de tão longo (quase quatro horas de duração) tive de assistir em duas sessões na matinê de domingo. Adolescente, não entendi quase nada do drama e daquelas batalhas napoleônicas intermináveis. Foi uma das poucas vezes que um filme me levou a um livro, ou no caso, mais especificamente a um autor, Tosltói.

Audrey me fascinou desde então pela sua elegância, discrição, sorriso sapeca e encantador. Era pescoçuda e tinha uma beleza angulosa. Nunca se tornaria uma atriz de primeira linha, mas possuía um charme original para representar qualquer papel na tela – fosse como índia renegada num western, como em “O Passado Não Perdoa”, ou como uma garota de programa como em “Em Bonequinha de Luxo” – o que acabou por levá-la a atuar em algumas das melhores comédias dos anos 50 e 60.

Audrey encarnou na vida valores que hoje em dia parecem totalmente fora de moda. É só olhar a nossa volta ou assistir algum destes medíocres programas de TV que se intitulam populares e o que as pseudo-atrizes-modelos fazem ou dizem para ter os seus 15 minutos de fama.

Com ela até aprendi a ser mais condescendente diante de ações humanitárias, desde que sem estrelismo e pieguice jeca . Quem quiser que compare a foto de Audrey com uma criança negra famélica num campo de refugiados, em 1992, e a imagem da modelo Gisele Bunchen entregando um cachê para o Fome Zero, em 1993. Enquanto Audrey, como embaixadora do UNICEF, expressa um olhar carinhoso, angustiante, com aquele monte de ossos no braço, a top model brasileira mira inexpressivamente em direção às câmeras aguardando apenas os cliques dos fotógrafos tupiniquins. É o famoso Penso, logo poso.

Quando Audrey tirou a foto, um câncer de intestino já devastava a sua frágil saúde. Mesmo assim, rodou o mundo em campanhas contra a fome de crianças somalis,nigerianas, sudaneses e bengaleses. Há estimativas que tenha levantado cerca de U$ 150 milhões com a sua peregrinação pelo UNICEF, de 1989 até sua morte em 1993.

A segunda Hepburn atravessou a minha adolescência em preto e branco quando a TV ainda exibia clássicos ingênuos e divertidos na sessão da tarde. Não perdia um se fosse com ela, Mickey Rooney, Elisabeth Taylor.

Katharine causou furor nas comédias ligeiras dos anos 30 e 40, tendo se consagrado como a mais bela comediante dessas décadas. Fez um papel impecável em “A Costela de Adão”, uma comédia genial onde atua ao lado de seu mais constante parceiro, Spencer Tracy. Até hoje é a recordista em Oscars, tendo abocanhado quatro na categoria de melhor atriz, embora nunca tenha pisado no tapete vermelho para receber o prêmio achava a cerimônia uma babaquice.

O seu melhor desempenho, no entanto, foi num filme em não levou a estatueta, o ótimo “Uma Aventura na África”, de 1951. Na película, contracenou com Humphrey Bogart que recebeu o Oscar pelo papel de um tosco piloto que comanda um cargueiro por rios africanos durante a 1° Guerra. Katharine encarna uma missionária solteirona, mandona, que se apaixona pelo comandante e juntos vão lutar contra um encouraçado alemão que aportou no Congo. Apesar de previsível, o final é divertido, digno da criatividade do diretor do filme, o também tosco, além de jogador e bêbado inveterado, John Huston.

Katharine nasceu no interior dum destes estados provincianos do nordeste americano onde viveu boa parte dos seus 96 anos. Dizia que sempre retornava à propriedade onde foi criada para se isolar do mundo, se distanciar das pessoas, para refletir sobre o rumo a tomar. Confessou que, a exemplo do pai, gostava de sentar numa cadeira de balanço na varanda e ouvir o murmúrio do rio, o uivar do vento, o farfalhar dasárvores, enfim aquilo que chamava de os “sons da vida”. E que isso era um bálsamo para a sua alma. Achei maravilhosa a metáfora. Todos nós, de vez em quando, precisamos nos recolher, nos distanciar de tudo para ouvir os “sons da vida”. Belo achado de Miss. Hepburn.

Um livro traduzido no Brasil com título “Os Bastidores de Hollywood” pretendia contar as preferências sexuais dos astros entre os anos 20 e 80. O autor insinua uma amizade fraternal entre Katharine Hepburn e Spencer Tracy, dando a versão de maledicência da imprensa da época por um suposto romance entre eles. Imediatamente joguei o livro para o lado. Não merece credibilidade.

Katharine confirmou, numa de suas raras entrevistas, o que tudo mundo sabia, ou seja, que manteve um relacionamento amoroso com Spencer por quase 27 anos. Disse que foi o homem de sua vida e que só não se casaram por ele já ser casado e pela sua condição de católico, o que o impedia de se divorciar. Também afirmou ter sido uma mulher extremamente feliz ao lado dele e que se fosse para fazer tudo de novo, repetiria sem pestanejar.

E finalizou contando que em 1967 os dois estavam terminando as filmagens de “Adivinhe Quem Vem Para Jantar”, uma comédia leve que focava num dos assuntos mais em voga na época, o racismo americano. Sua sobrinha Katharine Houghton fazia o papel de filha do casal Spencer/Katharine. Ela se apaixona por um negro, interpretado por Sidney Poltier, e assim os namorados vão ter de enfrentar uma série de situações difíceis geradas pelo preconceito.

Lá pelas tantas, no final do filme, Spencer – então já muito doente – tinha uma fala moralista sobre as relações entre brancos e negros. Não é que Spencer, um ás do improviso, abandona o script e emenda um discurso onde pede aos namorados que se mirem no exemplo dele e da esposa e vivam felizes, sem se importar com o que os outros digam ou achem disso. Spencer finaliza a cena olhando para Katharine e quando a câmara gira buscando a expressão dela, vemos um rosto emocionado, em prantos, pela declaração do parceiro. É uma cena de arrepiar pela sinceridade de Spencer e pelo olhar de amor marejado de Katharine, o qual explica sua resignação em suportar ser a outra e sua abnegação em cuidar da doença e do alcoolismo dele.

Dias depois, Spencer morreria na casa de Katharine. Ela resolveu não comparecer ao velório para não constranger a viúva, embora as duas se conhecessem e não fossem inimigas. Katharine nunca assistiu a esse filme. Confidenciou que não aguentaria a emoção de ouvir novamente as palavras ditas naquele dia, mas que o quê ele falou nunca vai se apagar.

Com o tempo, cada vez admiro mais Audrey Hepburn. E cada vez sinto mais inveja de Spencer Tracy.

9380cookie-checkOS SONS DA VIDA

2 comentários sobre “OS SONS DA VIDA

  1. Belo recorte. As emoções são universais, algumas passíveis de registro, como as relatadas acima. É bom perceber fatos que humanizam nossos ídolos, assim nos aproximamos deles e os trazemos a realidade de todos nós. Parabéns pela percepção, sensibilidade e habilidade de registro gráfico. Muito bom.

Deixe comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos necessários são marcados com *.